terça-feira, 1 de setembro de 2020


Como ardem essas conchas no caminho 

Os pés desviam

É inevitável pisá-las

Estralam ao longo da areia

Até o precipício da margem

No alto onde guardam os sussurros das ondas

Das ondas que cavam uma parte da praia


É fácil cair e ser engolido


Quem sabe fosse melhor


E como objeto derretido do sol

Ser arrastado para as pedras

Protegido pelas algas

Sem pulso, sem coração, sem nome


Jason de Lima e Silva 

Imagem: Caspar D. Friedrich, O monge à beira-mar, c.1810


sexta-feira, 29 de maio de 2020

Reflexões filosóficas em tempos de Coronavírus

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Luís Felipe Bellintani Ribeiro
(professor de filosofia da UFF)

Uma situação excepcional, como a de uma pandemia, ao obrigar ao rompimento com a normalidade cotidiana, acaba por revelar, inadvertida e paradoxalmente, não a exceção, mas a regra mais instransponível, exatamente porque, numa hora dessas, o que fica é aquilo com que não se pode romper, mesmo que se quisesse. Aquilo que, de há muito, a filosofia chama de “essência”, o que tem de ser de qualquer jeito, por oposição ao meramente acidental, eventual, contingente, o que talvez seja, talvez não, a depender de certas condicionantes. Numa hora dessas, todo o reino do artifício humano fica ameaçado, e a natureza resplandece como o que é, ao contrário, incontornável.

Ao menos àqueles como eu, remediados de classe média não tocados imediatamente pela fome e pelo desespero sem mais, amparados por remanescência considerável do artifício humano – nossa redoma de cimento com seus eletrodomésticos a nos proteger da violência das ruas e nossa redoma de abstrações jurídicas a nos proteger (por enquanto) daquilo a que os mais pobres estão desde sempre expostos –, uma vez cessada a azáfama que tanto nos estressa, mas também tanto nos distrai, fica a distensão tediosa e angustiante do tempo.

Tédio e angústia, duas afecções sem objeto específico, que giram em torno de nada, acabam por suspender e pôr em xeque, por isso mesmo, não esse ou aquele objeto específico, mas a própria totalidade do ente enquanto tal, em cujo horizonte qualquer objeto específico pode aparecer. O nada de ente nos escancara a essência do ser.

Heidegger na veia.

Sempre esteve aí a primeira de todas as perguntas filosóficas, “por que há simplesmente o ente e não antes o nada?”, da qual fugimos inconscientemente como o diabo foge conscientemente da cruz, em favor da comodidade garantida pela distração dos nossos estresses cotidianos.

Que fugimos dela mostra-nos o fato de nos havermos mal, em tempos anormais de pandemia, com o tempo distendido e o espaço contido, o ócio, o silêncio, a solidão, a suspensão, a falha, o desamparo, o desnorteamento presente, a dúvida quanto ao futuro e, principalmente, a perspectiva da morte, esse nada que limita, a cada instante e desde sempre, o ente da vida, como a sua moldura.

Mas ninguém espera de fato uma resposta à primeira das questões filosóficas. É uma pergunta retórica, no melhor sentido de “retórica”. O ponto de interrogação ao final quer apenas dar o tom de espanto e admiração a duas afirmações peremptórias e inquestionáveis: 1: há o ente. 2: não há o nada.

Parmênides na veia.

De todo modo, se a não-existência do nada não importasse de alguma maneira para a existência do ente, sequer haveríamos de verbalizar esse truísmo banal. Muito mais real que as bugigangas e quinquilharias expostas nos templos de consumo e o pisca-pisca barulhento respectivo de sua publicidade é a negatividade da saudade e da expectativa, da carência do desejo, da dívida impagável do sempre ainda por fazer, da dor sem nome, enfim. 

Assim, o mais rudimentar dos seres vivos, a ponto de estar mesmo no limiar entre o vivo e o mineral, regido pelo mesmo princípio de afirmação e expansão característico das formas de vida altamente complexas – a saber, conseguir multiplicar seu código genético no breve intervalo entre nascimento e morte, e assim conservar por algum tempo a forma (eîdos) da espécie (eîdos) –,  de repente escancara o que sempre esteve aí de modo velado: a possibilidade sempre iminente de colapso do que até então significou ordem e estabilidade (o caos não é apenas um momento anterior cronologicamente à instauração do cosmo, mas seu fundo último que o acompanha o tempo todo) e, simplesmente, a possibilidade iminente do mergulho derradeiro no nada, apagão da aísthesis e da nóesis, que é a morte para aquele que morre.

Sim, a ontologia regional do ente vírus pode nos ajudar a pensar na ontologia geral da totalidade do ente.

Um vírus é uma molécula de ácido ribonucleico envolvida por uma capa de proteína, à guisa de anteparo, a marcar a fronteira que separa um interior e um exterior, numa ipseidade mínima de simulacro de vida que sequer se constitui no que chamamos de célula. O vírus não tem metabolismo próprio, mas ele pode entrar em outro metabolismo e assim ter seu código genético replicado. Com isso, o vírus cumpre a determinação elementar de todo ser vivo acima assinalada, e por esse critério é tão representante da vida quanto qualquer outro ser vivo. Um código genético que se afirme efetivamente já é vida. É tão phýsis, natureza, quanto qualquer outro eîdos, inclusive, evidentemente, esse eidosinho faceiro e pimpão que é o homo sapiens.

Em linguajar nietzscheano: é tão Vontade de Poder quanto.

Não “quer” matar por ser intrinsecamente mau, mas “quer” apropriar vida para afirmar vida.

Mas o realmente interessante da ontologia do vírus é o fato de ela apontar para uma fronteira que, mais do que separar e isolar, dá conta, ao contrário, do fator de continuidade entre âmbitos aparentemente descontínuos e, portanto, aponta para um monismo ontológico radical: não há diferença solene entre o reino inteiro da vida e o mineral, não há um hiato metafísico entre ambos. Um vem do outro. A química orgânica é só um caso particular da química inorgânica. A tabela periódica é uma só. A química orgânica é apenas a química do carbono, esse elemento que tende a se combinar consigo mesmo formando moléculas enormes, como os ácidos nucleicos e as proteínas, mas que, enquanto elemento, se submete aos mesmos princípios naturais aos quais os outros cento e poucos elementos também se submetem.

É a teoria científica por enquanto em voga no Ocidente que diz: não é preciso apelar para nenhuma intervenção de um deus ex machina para dar conta da emergência da vida a partir da pedra. A própria trama intrínseca da história da pedra dá conta.

Com isso, prezado leitor, não quero dessacralizar a vida.

Quero sacralizar a pedra.

Cena do filme A guerra do fogo (1981), dirigido por Jean-Jacques Annaud
Esse vivente ancestral.

É claro que, a depender do sentido específico do “sagrado” em cada situação específica, pode muito bem ser o caso de uma profanação legítima.

Mas aqui quero propugnar um monismo ontológico radical que desemboca numa sacralização universal: se o homo sapiens e os outros hominem vieram de um primata não-humano; se todos os seres vivos vieram de um primeiro coloide que se formou a partir do inorgânico; se tudo que é terráqueo e terroso veio e vem do espaço sideral; se todas as estrelas vieram e vêm continuamente da mesma poeira estelar; matéria que estava reunida num ponto e que, como que numa explosão, começou a se expandir há 14 bilhões de anos, podemos aqui concluir que tudo, no fundo, é uma coisa só – que sobre a multiplicidade de indivíduos e de espécies devemos dizer que há um liame genealógico, desde o um, de tudo com tudo, uma “fraternidade” essencial, digamos, como metonímia de todo laço de parentesco, não apenas entre os indivíduos de uma mesma espécie, mas entre as próprias espécies, pois umas vêm das outras, desde o um.

O homem é um parente mais ou menos longínquo do vírus. O homem também, como o vírus, é feito de ácidos nucleicos e proteína, e também existe porque consegue reproduzir a tempo o código genético de sua espécie. O homem é um parente um pouco mais próximo da árvore, mais próximo ainda do peixe, mais ainda do lagarto, mais ainda do pinguim e da gaivota, e muitíssimo mais próximo do rato. Os morcegos de Wuhan são ratos que voam. Humanoides em potência que voam. 

Os morcegos são os únicos mamíferos que voam. Há os mamíferos que rastejam pela terra, há os que nadam nas águas, mas os morcegos são os únicos mamíferos que voam pelo ar.

Ratos que nadam, rastejam ou voam, em todo caso.

Não à toa, cientistas fazem estudos sobre o comportamento do ser humano manipulando em laboratório o comportamento de ratos.

O parentesco é evidente.

Acho bonito termos a humildade de reconhecer que, malgrado toda a complexidade que caracteriza nosso ser, não somos muito mais do que um vírus, do mesmo modo que acho bonito reconhecer que na simplicidade do vírus – aliás não tão simples assim, se compararmos moléculas grandes, como ácidos nucleicos e proteínas, a moléculas pequenas, como as inorgânicas, a despeito do liame de continuidade que há entre elas – já há motivo suficiente para deslanchar o espanto e a admiração próprios ao filosofar, por já jazer ali, entre o mineral bruto e a vida consciente própria do humano, todo o mistério do ser, que de resto caracteriza todo e qualquer ente que já veio à tona e deixou para trás o nada.

Acho que o leitor já entendeu aonde quero chegar. Sim, do monismo radical no âmbito da ontologia, não cogitado sem mais, mas inferido da composição de teorias científicas em voga no Ocidente, quero chegar a uma noção no âmbito da ética: a fraternidade radical de todas as coisas do universo, e a consequente relativização de qualquer pretensão de estabelecer hierarquias dando mais importância a certos entes que a outros. A diferença de superfície entre os diversos tipos de ente que habitam o universo não abole o fato de que uma igualdade radical os nivele radicalmente: são todos entes finitos que irrompem desde a mesma matéria, desde a mesma poeira estelar. Matéria – já o diz o próprio nome – é a mãe (mater) de todas as coisas. E o princípio ético de respeitar a mãe é fácil de propor e é de fácil aceitação por parte de todos. Aqui nesse pequenino pedregulho desse “remoto rincão de um universo cintilante de estrelas” (Nietzsche), a mãe se chama Gaia, mas isso é só um efeito da onomástica que precisa se multiplicar para bem nomear a multiplicidade de objetos. Diante da imensidão do universo feito de muito vazio e alguma poeira estelar (chamo ao conjunto de ambos “matéria”), até na hora de defender nossa deusa mor, a Terra, temos de ter humildade, porque ela é um ente minúsculo diante de uma vastidão gigantesca que mal conseguimos imaginar.

Hoje em dia vemos a retórica da “guerra contra o inimigo” aplicada ao combate ao coronavírus.

Tudo bem.

Precisamos sempre de retóricas para embalar nossas narrativas, pelas quais damos sentido aos fatos, pelas quais corrigimos com a linguagem a falta de sentido fundamental dos fatos, ou ao menos a falta de sentido, de acordo com o figurino humano, dos fatos brutos, totalmente fora da escala desse figurino.
Como dizia Novalis, “o mundo precisa ser romantizado”, sob pena de sucumbirmos ao mais tosco e desglamourizado positivismo.

Chegamos até esse ponto da história aos trancos e barrancos, erguendo e destruindo coisas belas, e não haveríamos de dar algum sentido épico a isso?

Ora, ora.

Parece mesmo não haver problema em tratar como inimigo um ser tão longínquo, ainda que parente, tão minúsculo, tão distante da consciência e dos sentimentos sofisticados que nos caracterizam, o tal “quase-mineral”.

Mas quando, por exemplo, a retórica da “guerra contra o inimigo” é aplicada de humano contra humano, e não raro faz parte dessa retórica a desumanização do inimigo, comparando-o a um vírus, um verme, um porco imundo, um rato de esgoto, vemos claramente que retóricas assim não têm nada de inocente.

Nesse momento do debate, vale sempre citar os versos de Chico Buarque na canção Ode aos ratos: “Rato de rua (...) Tenaz roedor (...)/ Oh meu semelhante/ Filho de Deus, meu irmão”.

A vantagem de usar a retórica da guerra contra o inimigo para falar da pandemia de coronavírus seria que, ao jogar a clivagem decisiva para o âmbito biológico (homo sapiens versus Covid-19), teríamos a chance de encarar de frente o fato óbvio da unidade da espécie e da igualdade natural de todos os indivíduos que a compõem, e assim repensar nossas clivagens políticas e sociais como puramente artificiais. Afinal, como diz Antifonte ao defender a igualdade natural de gregos e bárbaros, todos caminham com os pés e seguram com as mãos, e choram quando estão tristes e riem quando acham graça. E são acometidos pelas mesmas moléstias naturais.

Mas parece que estamos longe disso. Multiplicamos as clivagens para muito além do biológico...

Incrível. Mais de dois milênios após a República de Platão, e ainda estamos enredados na distinção amigo-inimigo quando vamos tratar de assuntos éticos. E ainda carecemos de impingir ao inimigo de ocasião a pecha de rato, de verme ou de vírus maldito.

E o inimigo do Si é sempre o Outro. Pode apostar.

Melhor relativizar esse troço, para não virar um fascista.

No Brasil de hoje, os piores tipos têm o hábito arrogante de se autoproclamarem pessoas “de bem”. Os entreguistas americanófilos se enrolam na bandeira nacional, cantam o hino do país que, no fundo, desprezam e, em nome de Cristo, evocam os piores afetos, os mais contrários aos que Cristo efetivamente pregou. O sujeito mente desbragadamente e sai acusando o adversário de feiquiníus.

“Chame o ladrão”, citando o Chico de novo, numa inversão própria da ironia para dar conta de uma realidade que ficou de cabeça pra baixo.

O cara rejeita o darwinismo no âmbito da biologia, único âmbito em que ele é realmente válido, e, não satisfeito, apregoa o darwinismo no âmbito econômico, político e social, verdadeira aberração ética.

A maior bandeira de que o cara é mau é ele se autoproclamar “do bem”.

Esse delírio coletivo depende de fantasiar um grande inimigo, a ser malhado como boneco de Judas em sábado de aleluia.

Sim, há mais de dois milênios Platão escreveu um texto e colocou na boca do personagem Polemarco uma definição de justiça que ainda não conseguimos superar: “fazer bem aos amigos e mal aos inimigos”, para a insatisfação do personagem Sócrates, incomodado com a aparente incoerência de a justiça, que é uma areté, uma “excelência”, isto é, um grau máximo do bem, ser definida tanto pelo bem quanto por seu contrário, o mal. Pelo raciocínio de Sócrates, a justiça deveria ser sempre exclusivamente fator de bem.

Mas, como assim, amigo e inimigo? O monismo radical acima exposto não deveria desembocar naturalmente na doutrina da amizade universal? Afinal, o Outro não está apartado de Si, mas ambos, antes, são o Mesmo.

O altruísmo entre as partes do todo seria, no fundo, o cuidado-de-si do Um.

Onde estaria o inimigo?

Pois é, no país da filosofia, tudo sempre é mais complicado do que a doce ilusão de saber, enfim, alguma coisa.

Ninguém sabe nada.

Só Sócrates sabe alguma coisa: que não sabe.

Merecido, o oráculo dado em Delfos pela Pitonisa a Querefonte.

É por isso que devemos numa hora como a de uma pandemia dar mais ouvidos à opinião da ciência que às opiniões lastreadas em ideologia ou religião. A ciência segue o exemplo de Sócrates e começa sua marcha sempre pelo reconhecimento da ignorância. A ciência não é dona da verdade. Sendo humana, demasiado humana, não é nenhuma Brastemp, mas “é o melhor que tá tendo”, como se diz nas Minas Gerais. A verdade é a meta para a ciência, nunca o dado de saída. O dado de saída é o problema e a dúvida. E a cada aproximação da verdade, que deve ser amparada em evidência emanada dos fatos e no aval compartilhado com os pares da comunidade científica, não prevalece a acomodação com o resultado, mas o desafio de falsificá-lo o quanto antes. Sócrates na veia: digam aí, Símias e Cebes, antes que eu trague esse aperitivo de cicuta, qual é a verdade, afinal; prefiro morrer triste, mas com a verdade na cabeça, a morrer alegrinho, iludidinho com uma mentirinha qualquer.
Quem estuda filosofia sabe quão problemático, porém, é falar de “evidência emanada dos fatos”. Por uma razão simples: tudo aquilo que é próprio do lógos humano, a interpretação, a valoração, a nomeação e o enredamento do nomeado em sintaxe e narrativa, não é uma instância segunda à espera da entrada da realidade primeira pelos sete buracos da cabeça para começar, então, a operar. Não. A dita realidade primeira já foi desde o começo atravessada pelo lógos. Não adianta definir a verdade como dizer aquilo que é, porque aquilo que é já é efeito de um dizer.

O círculo hermenêutico, porém, não é vicioso. E o filósofo deverá saber, seguindo o exemplo de Górgias, que combatia a seriedade dos adversários pelo riso e combatia o riso dos adversários pela seriedade, combater o eventual excesso de iluminismo de uma época histórica com romantismo, e o eventual excesso de romantismo com iluminismo.

Eu gostaria de apoiar explicitamente o projeto de nosso querido cientista Miguel Nicolelis de criar um iluminismo do século XXI – e com ele todo um ideário belíssimo que costuma vir no encalço: cosmopolitismo, cooperação entre as nações, paz perpétua e autonomia e liberdade dos sujeitos –, mas é preciso que ele traga subsumido em si toda a lição da história transcorrida desde o século XVIII. As luzes devem saber também deixar as sombras serem.

A Idade Média não é uma época de trevas, nem a modernidade é o último biscoito do pacote. A Idade Média é iluminada pela luz de seu Zeitgeist próprio. E o Zeitgeist luminoso da Modernidade também tem seu ponto cego.

Mas, a essa altura do campeonato, rejeitar aquilo que é o nosso fatídico histórico incontornável, a pretexto de decadência, como se a modernidade e o correlato desencantamento do mundo fossem uma questão de escolha, é o fim da picada.

Amor fati, reacionários e conservadores, amor fati! Resta-nos conhecer o passado e fazer o futuro, caminhando com o tempo, a favor dele, não contra, considerando o debate diacrônico que a tradição trava em torno da palavra filosofia desde os antigos. A história sempre poderá ser pintada como “progresso” ou “corrupção da origem”, conforme a edição dos fatos numa narrativa unificadora, mas, independentemente desse juízo, o fato é que “não podemos dar por não acontecido aquilo que efetivamente aconteceu”, limite ao qual, segundo os gregos, até os deuses estavam submetidos. Isso vale também para a história do pensamento. Não há como pensar hoje em dia desconsiderando o que disse Marx e o que disse Freud, por exemplo. É claro que os modelos que eles propõem não são a verdade absoluta, e estão aferrados ao limite de seu léxico e de sua sintaxe, e de seus pressupostos axiológicos, e de suas condições históricas. Dizem uma parte da realidade, e não a realidade toda, mas o fato de dizerem uma parte, não de uma elucubração arbitrária, mas da realidade, faz com que devam ser considerados. 

Amor fati é o afeto ético básico de toda filosofia trágica digna do nome, que, ao invés de pretender excluir uma parte do real a pretexto de um moralismo qualquer fundado numa ontologia simplista qualquer, encara de frente a contradição fundamental, pela qual ainda faz sentido falar em guerra contra o inimigo mesmo no âmbito de uma ontologia da fraternidade, logo amizade, universal.

Sim, se, por um lado, há uma contradição malsã a ser sempre combatida pelo filósofo, mera frouxidão de uma ambiguidade que desnorteia e assim debilita o discurso e a ação, há também uma outra contradição benfazeja, a ambiguidade inerente a todo discurso complexo, de uma polissemia a ser sempre destrinchada pela analítica do perspectivismo e do relativismo.

Os pitagóricos não se pejavam de assumir, logo na abertura de sua doutrina, uma contradição do segundo tipo.

Tudo é um, mas esse um é a tensão harmoniosa de dois princípios: o par e o ímpar.

O um é dois.

O monismo é um dualismo.

O Outro já vige no âmago do Mesmo desde a origem, não é apenas uma noção de segunda ordem num hipotético Império da Identidade.

Verdade antiquíssima, aliás, compartilhada por civilizações as mais dispersas pelo orbe terrestre, muito antes dos pitagóricos e dos gregos em geral, essas “crianças tardias”, como diz o sábio egípcio a Sólon no Timeu de Platão.

É que o Um não é só a quietude da paz panteística entre irmãos. É também o movimento do conflito panteístico, em que as “formas” (de novo, para bem fixar o léxico: os eíde, diriam os gregos, as “espécies”, diria o neolatim), ainda que irmãs, precisam disputar a matéria finita, para afirmarem-se a si, pois não existem formas separadas da matéria numa ontologia imanentista, que é a que aqui se propõe.

As batatas do Machado.

O coronavírus, a árvore, o peixe, o lagarto, o pinguim, o rato, o morcego de Wuhan e o homo sapiens têm os respectivos códigos genéticos de seus ácidos nucleicos moldados a partir dos mesmos quatro ou cinco nucleotídeos constitutivos.

Só muda a ordem.

Quatro ou cinco, prezado leitor, apenas quatro ou cinco pecinhas de Lego dão conta de toda a montagem genotípica do reino da vida no planeta Terra, essa brincadeira da criança de Heráclito.

Os mesmos aminoácidos, a depender da ordem da combinação, formam todas as proteínas dos seres vivos e acabam por lhes conferir fenótipos muito dessemelhantes.

Os aminoácidos, os nucleotídeos são as batatas, sempre em disputa.

Os carnívoros os arrebatam dos outros bichos, os herbívoros, das plantas, as plantas os sintetizam desde o mundo mineral usando a energia da luz do sol.

A unidade do todo se sustenta enquanto harmonia e disputa, qual a guerra de Heráclito. 

É o “pagar justiça e castigo” (dídonai díken kaì tísin) que todas as coisas do universo têm de fazer a todas as demais, “em função da injustiça cometida” (tês adikías), conforme a sentença mais antiga da tradição ocidental, a Sentença de Anaximandro.

Díke por adikía.

Restituir justiça pela injustiça cometida.

Nascer é arrebatar a matéria de outrem para afirmar a própria forma. O nascer depende de um matar. Eis a injustiça original. Punição pela injustiça cometida: definhar e morrer, liberando assim a matéria para outros nascimentos. Eis a restituição da justiça.

Na luta do homem com o vírus não há o lado da vida contra o lado da morte.

É vida/morte contra vida/morte.

Chega de enlatado americano, com seus mocinhos e bandidos, super-heróis e vilões profissionais.

Chega de novela da Globo, com seus bonzinhos e malvadinhos, caricaturas da mediocridade.

Mais tragédia, por favor, em que as partes em disputa têm sempre alguma cota de razão e de culpa.

Que os homens se valham da retórica da “luta contra o inimigo invisível” é o que se espera daquele que é apenas um lado da contenda. Se os vírus fossem animais que têm lógos, isto é, se pudessem falar, e se fossem animais políticos, também usariam semelhante retórica, só que com sinal invertido.

Bin Laden arremessou dois aviões contra as Torres Gêmeas em nome do bem contra o mal. Bush invadiu o Afeganistão, em revide, em nome do bem contra o mal.

Ninguém é mau na sua autoconcepção. Mau é sempre o outro.

O Outro.

Melhor relativizar esse troço, caro leitor, para não virar um fascista.

Feita sem mais a equação intuitiva “bem = preservação/afirmação de si” e, de outro lado, “mal = destruição/negação de si”, resulta daí que o olhar que olha para o todo, que olha para a disputa que as formas travam em torno da matéria e pela matéria, vê a tragédia da simultaneidade do bem e do mal, pois que o nascimento da forma que nasce se liga fundamentalmente à morte da forma que morre. Só a matéria resta como indiferente a esse discernimento entre bem e mal, só a matéria é “para além de bem e mal”.

Aliás, não faltaria razão e motivo para uma luta contra uma espécie que, em tempo recorde, detona com a biodiversidade do planeta, polui as águas e o ares e faz terra arrasada da Terra, sem nem ao menos fazer isso em prol de todos os indivíduos dessa espécie, mas para o usufruto nababesco de uns poucos e privação da imensa maioria dos congêneres.

Vou torcer pro vírus, nesse caso, como torceria pelo Íbis contra o Liverpool...

Uma das consequências da freada brusca na atividade econômica causada pela pandemia foi a diminuição da poluição. Paisagens voltaram a ser visíveis. Animais selvagens circularam por ruas de cidades desertas.

Os indivíduos humanos diariamente matam um número gigantesco de indivíduos de diversas espécies de animais e vegetais para devorar-lhes a matéria, como se o universo girasse em torno do homem, tão impudicamente quanto o vírus apropria o metabolismo do indivíduo humano. Mas, “se pudéssemos nos entender com a mosca, veríamos que também ela boia no ar com esse páthos e sente em si o centro voante do universo” (Nietzsche).

Será que não somos capazes de criar, a essa altura da história, um humanismo que prescinda da posição antropocêntrica, que realmente não se justifica a essa altura da história?

Será que não poderíamos, pelo menos no início da conversa, não por arrogância, antes, pelo contrário, por modéstia, prescindir da tese de que o ser humano esteja no centro da criação e de que os outros seres foram criados para lhe servir de alimento ou instrumento?

Navalha de Ockham, por favor.

Por modéstia.

Será que não podemos encontrar em outro lugar um motivo para amar e proteger o ser humano? Talvez do lado da assunção da finitude e da mortalidade? Por que rejeitar a finitude e a mortalidade para enaltecer a humanidade? Afinal, o ser humano é finito e mortal em muitos sentidos, como, de resto, todos os demais entes do universo, nossos irmãos.
Não apenas cada indivíduo de uma mesma espécie está fadado a morrer; a própria espécie está fadada a desaparecer, em alguma dobra do tempo biológico, geológico ou cosmológico. No caso da espécie humana, talvez nem se precise esperar tanto, o próprio tempo histórico dos humanos pode compreender, como decorrência da própria ação humana, o fim da espécie. Aos olhos da natureza, porém, a pior hecatombe da história dos homens é ainda um rearranjo qualquer da matéria dentro das leis da natureza, e, como tal, uma outra harmonia.
Por isso, acho ainda antropocêntrica uma outra expressão retórica comum de se ouvir hoje em dia, a da “vingança da natureza”.

O ser humano destruiu florestas, desentocou o morcego e o vírus que estavam lá, na deles, e agora paga o preço disso.

Até é verdade.

Mas representar como “vingança”, como se houvesse uma grande consciência providencial segurando a balança e o chicote por sobre a cena imanente do mundo, parece-me de novo dar muita pompa e importância a esse “bípede ingrato” (Dostoiévski), que acha que “os gonzos do universo giram em torno do seu agir e pensar” (Nietzsche) e têm o tamanho e a temporalidade ajustados ao seu figurino.

Qualquer rearranjo da matéria dentro das leis da natureza é ainda harmonia, pois harmonia não é apenas a síntese que pacifica, mas também a antítese do conflito.

É realmente duro de engolir. Há 14 bilhões de anos a matéria do universo vem se rearranjando continuamente dentro das leis da natureza; uns dez bilhões de anos depois, num cantinho perdido desse universo, num pedregulho que se desgarrou de uma estrela qualquer, a matéria começou a se rearranjar de modo mais raro e complexo; toda uma rede de interações foi lentamente formando um sistema de interdependência; sim, a Terra inteira pode ser considerada um único ser, cheia de jogos de vida e morte, cheia de violência, claro, mas um único ser que se mantém no equilíbrio móvel de suas partes em simbiose: não fosse a simbiose entre uma série de micróbios e o homem, o homem não estaria aí. Vamos agora falar de “micróbio do bem” e “micróbio do mal” por isso, como há até pouco tempo as crianças aprendiam na escola que havia animais úteis e animais nocivos? Tome antropocentrismo. Ora, quando Protágoras diz que o homem é a medida de todas as coisas, ele está a fazer uma denúncia, e não uma apologia. É fácil falar de mãe natureza pensando na oncinha pintada, na zebrinha listrada e no coelhinho peludo. Difícil é reconhecer-se irmão dos bichos escrotos.

Quatorze bilhões de anos de lenta complexificação do um em múltiplas formas em simbiose e eis que a versão ocidental do ser humano (que hoje em dia domina quase todos os quadrantes do globo) começa a manipular as partes, como se elas não dependessem da articulação de todo o sistema, e isso numa velocidade totalmente incomensurável com a lentidão própria dos processos naturais.

Deu ruim, como não poderia deixar de ser.

“Vejam como as águas de repente ficam sujas...” (Gilberto Gil).

 É duro de engolir, mas temos de aprender a lição, e tentar mudar alguma coisa, sem recrudescer ainda mais a perspectiva antropocêntrica.

Se, após explodirmos nossas bombinhas nucleares, numa hecatombe totalmente indiferente ao universo extraterrestre, só restarem as baratas na face da Terra, a evolução das espécies seguirá, pelas baratas.

Mas também as baratas estão fadadas a desaparecer.

É que as teorias científicas até o momento em voga no Ocidente não apenas nos dão uma cosmogonia de todas as coisas, mas também uma escatologia.

Todas as formas vão se dissolver na matéria da mesma maneira que se geraram da matéria. O sol veio a ser, um dia vai deixar de ser. A Via Láctea veio a ser, um dia vai deixar de ser. A única coisa que não veio a ser, mas sempre foi, é e será, e que, portanto, cumpre o papel da essência buscada pelos filósofos, é a poeira estelar, a matéria, que, dizem, há 14 bilhões de anos estava toda comprimida num único ponto, antes de explodir.

O espírito, por cuja imparidade poderíamos falar de uma dignidade ontológica acima da matéria, é nada mais que spiritus, pneûma, ou ainda anima, animus, ánemos.

Psykhé.

Sopro, alento, vento, portanto ar, portanto corpo, portanto matéria.

A alma é uma forma do corpo. O espírito é uma forma da alma. A razão é uma forma do espírito.

Tudo vem da terra, quand même.

Da “terra”, um outro nome para o corpo.

Tudo vem da terra; importante não perder de vista esse princípio.

Ferdynand Ruszczyc, Terra, 1898
“Permanecei fiéis à terra”, irmãos, “e não acrediteis nos que vos fazem promessas extraterrestres” (Nietzsche).

Se o alento que a matéria produz é capaz de consciência, esse milagre puramente físico deve ser acolhido por seu destinatário com humildade, e não com arrogância. Ao tomar consciência de si e dos outros entes, o ser humano realiza, por todos os entes, uma possibilidade da matéria comum. O ser humano é a poeira estelar se dando conta de que a poeira estelar e todas as suas derivações existem.

Mas como falar de existência antes desse dar-se conta?

Não seria a consciência a própria ciência originária?

Não seria a representação a própria apresentação do que se presenta pela primeira vez?

Esse é o grande fundamento da dignidade humana.

Os seres humanos são todos diferentes entre si, quanto aos pontos os mais variados, mas todos sentem dor e têm a representação consciente da dor.

Esse é o grande fundamento da igualdade de todos os seres humanos, igualdade em dignidade, no seio da mais complexa, variegada e irredutível diferença.

Mérito exclusivo do ser, e não do ser humano. Não foi o próprio humano que deu a si mesmo o fato de patentear na consciência para todos os entes do universo o fato de todos existirem. Ele se encontrou lançado de chofre nessa condição. Como diz Caetano Veloso: “aconteceu de eu ser gente, e gente é outra alegria, diferente das estrelas”.

Mesmo sem nenhuma doutrina especista (antropocêntrica) como pano de fundo, vale lutar pelo ser humano, pelo milagre que representa seu advento casual, como espécie e em cada indivíduo igualmente. Vale lutar para que ele desapareça no tempo biológico, geológico ou cosmológico, mas não no tempo histórico, que está ao alcance de sua força transformadora, na margem ínfima de sua liberdade. 

Sim, falemos daquilo que ainda podemos fazer a partir da crise do coronavírus, daquilo que a Moîra e a Týkhe deixaram ainda à nossa liberdade.

Afinal, ouve-se amiúde: o mundo jamais será o mesmo depois da crise do coronavírus. Qual é a índole desse vaticínio?

Muito se tem falado sobre duas consequências, mais ou menos necessárias, de duas verdades óbvias que o isolamento social exigido pela pandemia deixou escancaradas em praça pública, de modo a não ser mais possível tergiversar e escamotear sua obviedade.

Primeira verdade óbvia: o homem é um animal gregário, social, “político”, diriam os gregos, fazendo referência a um bicho cujo habitat natural é a cidade (pólis); dito sem rodeios: os seres humanos não vivem uns sem os outros; precisam da vida comum. Quando a gente é obrigado a ficar isolado dos outros para evitar contágio mútuo é que fica escancarado quão dependente, em múltiplos sentidos, a gente é dos outros.

Segunda: o fundamento da produção de riqueza é o trabalho humano. Um ricaço podre de rico nada poderia fazer de seus dígitos eletrônicos cheios de zeros à direita numa situação de isolamento absoluto, trancafiado em sua cobertura de cimento, se não dispusesse do fruto do trabalho de outrem, ao passo que o pequeno lavrador ainda poderia trabalhar sua pequena gleba e de seus frutos sobreviver.

As consequências seriam, respectivamente:

1. A obsolescência do modelo neoliberal, que negligencia a força originária do caráter social do homem em favor de uma concepção fraca de sociedade, como mero resultado, e não como origem, do entrechoque de ações de caráter individualista e privado.

2. A obsolescência do modelo que privilegia o capital financeiro, que nem capital produtivo é, em detrimento do trabalho, cada vez mais precarizado.

Se seguirmos a lógica, é de se esperar no mundo pós-pandemia ao menos um consensozinho keynesiano básico, como salvação do capitalismo mesmo. Sendo um pouco mais otimista, o reconhecimento, se não consensual, ao menos largamente majoritário, da necessidade de um sistema de saúde público e universal, como o SUS aqui no Brasil, de uma previdência pública solidária, de uma regulamentação justa do trabalho. Oxalá um sistema único de educação também, um SUE, com planos de carreira e salários dignos para profissionais da educação desde a creche até a pós-graduação. Renda mínima no mundo inteiro? Parece óbvio. Caprichando ainda mais na utopia: a entrada bonita dos saberes dos povos não-ocidentais nas escolas do Ocidente, de cujo atravessamento recíproco surgirão as filosofias do futuro próprias do mundo do futuro. Afinal, se a meta de enfrentar efetivamente suas duas principais encrencas, a desigualdade social e o desequilíbrio ecológico, entrar no radar do Ocidente, nada mais lógico do que olhar para os povos que, pela própria dinâmica de suas culturas, sequer chegaram a estar alguma vez assim encrencados.

O problema de tudo isso é que tudo isso é lógico demais, óbvio demais, racional demais, iluminista demais.

É muito bom para ser verdade, como se diz.

Eu gostaria muito de fazer coro com o ideário de nosso querido economista Eduardo Moreira, totalmente condizente com aquele ideal de um iluminismo do século XXI do Nicolelis supracitado, que depende da distinção de uma economia da necessidade (finita) e uma economia do desejo (infinito). Se, de um lado, a encrenca da desigualdade se enfrenta com crescimento econômico e, de outro lado, a encrenca ecológica se enfrenta com decrescimento, a única maneira de resolver a aparente contradição é pensar num crescimento do PIB baseado na expansão da agricultura familiar não poluente e devastadora, na expansão das profissões ligadas à arte, à cultura, na expansão dos produtos da linguagem e do pensamento, que não precisam ferir de morte a Terra.

O problema é que, em se tratando de ser humano, não é nada fácil distinguir o necessário do supérfluo. De que tem fome o ser humano? Há alguma necessidade finita sua não atravessada desde a origem por desejo infinito, a despeito da obviedade intuitiva dessa distinção? Os outros animais comem até o limite da necessidade. A imparidade da condição humana, por seu turno, funda ao mesmo tempo a figura do faquir jejuno, do chef gourmet, do natureba fitness e do glutão junk food. Tudo a mesma coisa: um quê além do necessário natural, algo que flui por sobre o necessário. Fluir sobre: supérfluo. Um supérfluo substancial.

Platão na República já tinha colocado Gláucon a protestar diante da primeira cidade imaginada por Sócrates, cidade frugal e vegetariana, cheia de prudência e moderação, chamando-a pelo epíteto ofensivo de “cidade de porcos”. Resignado, Sócrates introduz nela o “luxo”. Logo surge nela um monte de coisas e gente que não havia na primeira, o urbano se desgarra do rural e, corolário mor, surge a guerra e a necessidade de um exército. Vinte e três séculos depois, Marx captou a mesma verdade e apontou para o fato de que, satisfeitas as primeiras necessidades, surgem novas necessidades.

Para mudar as coisas, não bastará o argumento racional que demonstre, num silogismo, o óbvio. Enquanto a imagem de um playboy em seu carrão, seu iate ou seu jatinho não suscitar a impressão generalizada de breguice, pouco valerá a tomada de consciência do conceito de injustiça. O processo deve correr no plano estético, tanto quanto no noético. O consumismo afetado da dondoca é cafona, afinal, e não apenas insustentável, e deveria produzir vergonha, alheia e própria, e não inveja alheia e vaidade própria. A cena de um magnata poderoso espumando arrogância e, feições constritas de tanto ódio, gritando alterado que seu país há de ser grande de novo, em plena realidade multicultural, deveria embrulhar o estômago muito antes de o cérebro chegar para fazer o seu trabalho. É brega, é cafona, é de mau gosto, é repugnante.

Países e grandezas de países são fatos do artifício humano, da história humana, e não da natureza, não há nenhuma essencialidade ontológica aí. Mas o mundo que emergirá no pós-pandemia talvez não seja o da cosmópole multicultural solidária, como seria lógico acontecer, e sim o do recrudescimento dos nacionalismos racistas, em âmbito global, e dos individualismos classistas, em âmbito local.

Que desgraça.

Mas, entre o pessimismo de que o mundo se tornará pior depois que a crise do coronavírus passar (Agamben, com razão: o recrudescimento do controle biopolítico) e o otimismo de que não haverá como sustentar mais esse modus vivendi capitalista-ocidental obsoleto (Žižek, com razão também: a possibilidade de retorno da palavra comunismo à agenda ocidental), resta a experiência da tensão, própria da filosofia trágica, e seu correlato riso tragicômico, pela desconfiança de que o que ocorrerá mesmo será que ele permanecerá a mesma porcaria maravilhosa, numa permanência mutante, como não poderia deixar de ser, e mutante conforme o ritmo da ampulheta do ser destinado ao humano, ser incontrolável por seu arbítrio, ainda que produto também de sua ação consciente e inconsciente.

A propósito de otimismo e pessimismo, duas ilusões antropocêntricas, gostaria de concluir com uns versos do Gil, que fazem a síntese, na maior simplicidade, de Parmênides e Heráclito (vamos combinar, o cara, para fazer a síntese de Parmênides e Heráclito com simplicidade, é um gênio).

Gilberto Gil na veia:

“Não me iludo.”
“Tudo permanecerá do jeito que tem sido.”
[a saber:]
“Transcorrendo, transformando...”

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Anotações de quarentena III

O sequestro do último adeus

Publicado originariamente no 
Le monde diplomatique/Brasil 
no dia 24 de março 

Jason de Lima e Silva

Se, sob o sol, nada mais velho e vil que a morte,
quem viu, na vida, novidade em estar vivo?
Belchior, Até mais ver, 1993

     A morte é uma ruptura para quem fica. Para quem vai, pouco se sabe. O mistério grava o coração das diferentes culturas: aparece na poesia, no canto sertanejo, longe da retórica enfadonha dos pastores. A ruptura da morte significa, por um lado, a impossibilidade de se reencontrar a pessoa, ao menos em carne e osso, aqui na Terra. Por outro lado, significa a fatalidade de o morto já não ser outro além de tudo o que pôde ter sido. Mesmo que saibamos possuir um limite finito de vida, imposto pela natureza, nem sempre é bem-vinda a ideia de que a nossa hora chega e, algumas vezes, traumática a consciência de que se foi para sempre alguém que amamos. Pode, sem dúvida, conceder a morte o devido descanso a uma pessoa, como se costuma dizer, “não morreu, descansou”, como forma frequentemente de aliviar mais a nossa alma do que a dos mortos. Os sofrimentos que nos inflige a vida suscitam, em certos momentos, a impressão de que a morte seja uma libertação, um repouso, um alento ao que deixa de fazer sentido, sobretudo quando a dor se torna a regra, e não a exceção, durante a existência. Requiescat in pace: repouse em paz, diz o epitáfio latino. Isso contudo não retira a tristeza de quem fica, a sensação de que lhe foi roubada do horizonte da existência uma companhia, ainda que para o vivo possa também representar um alento, quando é o caso, por exemplo, de se ver livre das responsabilidades e dos sacrifícios em relação àquele que regularmente sofria. Mas ao contrário de resignação e alívio, pode a morte exigir a ação de quem permanece neste mundo, pela revolta contra uma injustiça, a exemplo de Hamlet, ao ouvir do fantasma de seu pai que sua morte foi planejada, um complô homicida, para lhe tomar o trono. As composições do rapper Sabotage traduzem, em várias passagens, a revolta e a perplexidade do que significou a partida dos amigos e irmãos do Canão, sua comunidade: “até o Loquinho não se despediu de mim, deixou sozinho, parte do Canão Deus levou." (País da fome). Sabotage também não se despede dos amigos, é assassinado. Ao crente ou ao cético, o absurdo é posto a nu quando ceifada toda a promessa de vida na flor da idade: “notícia ruim, tive que ser forte, trouxe-me saudade a imortalidade” (País da fome, 2016). Para isso serve fundamentalmente o luto: uma demora para o espanto que permanece, e se modifica. O luto é o tempo necessário de reconciliação com o mundo, porque é justamente o mundo, como diz Freud, que no luto “se tornou pobre e vazio” (Luto e melancolia, 1917). Os rituais fúnebres são, na maior parte das vezes, apenas um breve caminho de uma longa despedida. Qual o sentido do luto, aliás, senão justamente o de sopesar as diferentes impressões afetivas e metafísicas para quem fica sobre quem foi, a propósito de tudo o que há e o que deixa de ser?
     Duas histórias de nossa cultura são emblemáticas a respeito do direito e do dever dos ritos fúnebres. Elas nos chegam dos gregos. A história de Antígona de Tebas, filha de Édipo, e a história de Príamo, rei de Tróia, mais precisamente a cena de seu encontro com Aquiles, seu inimigo. Antígona é um drama trágico escrito por Sófocles, representado em 442 a.C.. Príamo, pai de Heitor, aparece na Ilíada de Homero, o poema épico do século VIII a.C. Comecemos por Antígona: a lei de Creonte, rei de Tebas, não é persuasiva o bastante para impedir o ímpeto de Antígona de prestar as honras fúnebres a seu irmão, Polinices. Nem sua irmã, Ismene, consegue demovê-la, assim como Hémon, filho do rei, não consegue convencer o pai de suspender o edito e a condenação. A esse drama antecede a história de Polinices e Etéocles, irmãos de Antígona. Polinices se junta a cidade de Argos e entra em guerra contra Tebas, após ser traído pelo irmão Etéocles, que não lhe cede o trono, segundo um acordo de alternância no governo da cidade. Ambos morrem no combate, um pela mão do outro. Para Creonte, novo rei de Tebas, Polinices é um inimigo da pátria, por isso a proibição de sepultá-lo, sob pena de morte: “não receba sepulcro nem lágrimas”, determina o rei. Para Antígona, antes de qualquer coisa, Polinices é seu irmão, a lei de Creonte é apenas um decreto, e as leis às quais a jovem deve obediência, em contrapartida, não são propriamente leis escritas, fadadas à contingência do tempo e às urgências da cidade: “não são (leis) de hoje, nem de ontem", diz Antígona, "mas são sempre vivas, nem se sabe quando surgiram": são uma imposição sobretudo das divindades subterrâneas, leis portanto, divinas. Se um irmão atacava Tebas e o outro a defendia, como diz Creonte, a lei dos mortos, responde Antígona, é igual para todas e para todos. Além do que, Antígona se diz não gerada para odiar, mas para amar. A heroína é flagrada pelos guardas do rei em prantos diante de Polinices: verte três vezes vinho sobre seu corpo, como forma de libação, e lança sobre ele um punhado de pó ressequido da terra. Cumpre, portanto, os ritos elementares de despedida e é por essa razão presa e condenada pelo rei. Valer ler a tragédia.

Nikiforos Lytras, Antígona diante da morte de Polinices, 1865

     A segunda história, o encontro do rei Príamo com Aquiles, é contada no 24° canto da Ilíada. Aquiles já havia vencido Heitor, filho do rei troiano. Já havia ultrajado seu corpo, ao arrastá-lo inúmeras vezes amarrado em seu carro, para que Heitor não pudesse ser reconhecido e glorificado como herói em Tróia. Aquiles faz essa barbaridade toda para vingar Pátroclo, seu íntimo amigo, que havia morrido pelas mãos de Heitor. O fantasma de Pátroclo, aliás, aparece a Aquiles para lhe pedir um funeral menos apressado, sem o qual não conseguiria se juntar às almas dos mortos. Que o fogo, portanto, consuma de vez meu cadáver sobre a pira e que meus ossos sejam guardados em urna, e que junto a essa urna estejam os teus ossos, Aquiles, quando morreres: para que sejamos juntos sepultados. Eis o desejo de Pátroclo. No 24° canto da Ilíada, Aquiles recebe Príamo à noite em sua tenda, no acampamento próximo ao palácio. O rei se prostra diante do inimigo, abraça seus joelhos, em sinal de súplica, “beija as mãos assassinas que tantos filhos lhe mataram", no verso de Homero. Príamo invoca a lembrança do pai de Aquiles, que em terras distantes sente falta do filho, sofre por ele. Ambos choram. Príamo por seu filho. Aquiles por seu pai, mas também por Pátroclo. Por fim, Aquiles restitui o cadáver de Heitor ao rei troiano, dentro de um esquife, para ser recebido pelos seus conterrâneos nas honras fúnebres. São episódios emblemáticos de nossa cultura, porque lembram o valor de um corpo cuja presença já nos deixou. Era comum entre os gregos, vale acrescentar, colocar uma moeda entre os dentes do falecido, um óbolo, antes de ser cremado ou enterrado. A moeda servia de pagamento a Caronte, o barqueiro que conduzia as almas por um rio divisor de águas, entre os vivos e os mortos, até a margem oposta, templo de Hades. Luciano de Samósata, no século II de nossa era, já julga supérfluas, e um tanto ridículas, as cerimônias fúnebres: lavar e untar o corpo com os melhores perfumes, depois os gemidos, as lamentações, os murros no peito, as libações com vinho puro, a opulência dos túmulos, tudo isso é excessivo por uma razão evidente: a maioria considera a morte “o maior dos males" (Luciano de Samósata, Os funerais, c.185 d.C.). Embora possa haver caprichos, e mesmo exageros, o ritual é apenas uma preparação para o luto que continua e se transforma no coração de quem fica.
     Velado o corpo, basta enterrá-lo. Isso, claro, se tudo vai bem. Quando a normalidade vinga, a exceção da morte é rapidamente resolvida. Em uma sociedade moderna e capitalista como a nossa, os seguros cobrem tudo: a preparação do corpo e a cerimônia de adeus são terceirizadas. Quem pode pagar, mantém a visão das coisas fúnebres à distância. Assim como os velhos são mantidos à distância, porque fatalmente invocam aquilo com o que, em geral, a nossa sociedade não quer se comprometer. Um livro vale a pena ser lembrado, publicado em 1982. A solidão dos moribundos, de Norbert Elias, título pelo qual o problema já se explicita: os vivos, cada vez mais, pressentem a morte como coisa “contagiosa e ameaçadora”. Mas quando, ao contrário da normalidade, é a exceção que vinga? Nem o destino dos mortos parece garantido. 
Das duas, uma: ou o velório, ou o sepultamento, não são mais possíveis. A despedida é interrompida, não se pode ver nem velar a imagem da pessoa, de um irmão, de uma mãe. Ou ainda, não se tem como, nem onde, enterrar seu corpo, ou alguém para fazê-lo. Isso aconteceu na Itália, em razão do coronavírus: proibição e multa por participação em velórios, cadáveres em casas e apartamentos, a angústia de seus parentes para encaminhá-los à cremação ou ao cemitério. Isso aconteceu na maior cidade do Equador, Guayaquil, com o colapso de seus hospitais e necrotérios, a fratura do sistema público e sanitário, a falta de caixões e de coveiros. Nada disso à toa. A política de austeridade implantada pelo presidente Lenín Moreno, submisso ao FMI, não dá suporte à saúde pública, perverte os dados alarmantes, militariza a província de Guayas e a declara, fim de março, Zona de Segurança Nacional, quando efetivamente o governo já perdia a conta dos óbitos em razão do inimigo sem pátria que, por sua vez, é capaz de ampliar a subcidadania dos vivos aos mortos. Se o corpo não permanece em casa por dias a fio, ele encontra seu leito na familiaridade da rua, na calçada em frente, infectado e interditado do sepultamento. Sem direito à cova, o quinhão que não falta sequer ao pobre, em tempos normais: "É de bom tamanho, nem largo nem fundo, É a parte que te cabe deste latifúndio" (João Cabral de Melo Neto, Morte e vida severina, 1955).
     Esse é um dos lugares de perplexidade no qual nós nos encontramos durante uma pandemia: a ausência do velório, o sepultamento interditado. Não apenas em uma pandemia, mas no olho do furacão de um governo do lado da morte, o que torna o desafio de viver duplamente perigoso. Paisagem já devastada por nosso necroliberalismo tropical: cada um por si e ninguém por todos. E ainda temos de lutar contra as informações falsas reproduzidas e enviadas pelo exército mercenário de robôs, mentiras creditadas e propagadas por seus fiéis, como uma tecnologia ideológica de edição de imagens e discursos, capaz de usurpar os dados da realidade, mais catastrófica para a civilização do que o vírus para a natureza. Culpa-se o comunismo chinês pela difusão da doença e não se pergunta por que vangloriam um país, como os Estados Unidos, no qual uma massa de gente vende o pouco que tem para pagar o leito de um hospital, por que no nosso país se cortam bolsas de pesquisa da universidade, por que se paga mal as enfermeiras e falta segurança e equipamentos para o trabalho, por que perdura uma emenda constitucional que congela o investimento público da saúde, por que foram dispensados os médicos cubanos: por que são médicos ou por que são cubanos? Guayaquil é aqui, só não queremos ainda ver. O novo ministro da saúde, para piorar a cena, considera não haver muito sentido o investimento em respiradores pulmonares. “O que se vai fazer com isso depois?”. O Exército já consulta as prefeituras sobre o número de covas e cemitérios, no mesmo momento em que muitas cidades e estados brasileiros reabrem shoppings e igrejas. Manaus recém adotou o sistema de trincheiras para o enterro em valas coletivas. Que faremos? “Vamos às atividades do dia: lavar os copos, contar os corpos e sorrir a essa morna rebeldia”. (Criolo, Lion Man, 2011). Vemos em contrapartida a política na sua pulsação originária, os movimentos sociais no comprometimento solidário e educativo, como os sem-terra e os sem-teto, a auto-organização das comunidades periféricas, como Paraisópolis. Uma das coisas que nos humaniza é a consciência da morte, a morte contra a qual resistimos, individual e coletivamente: por isso a invenção das artes e coletivamente: por isso a invenção das artes e ciências, por um lado, e a da política e justiça, por outro. A percepção da beleza e a busca do conhecimento precisam de uma medida a partir da qual a comunidade humana minimamente se entenda para, primeiro, sobreviver, e que assim encontre e compartilhe, se possível, a alegria de viver entre outros seres. Humanos ou não humanos, vivos ou mortos. Não somos os únicos nem os últimos seres deste planeta. E talvez a nossa vontade e a nossa soberba, o fascínio de nossa produção e de nosso consumo, o ruído de nossas máquinas e o esgotamento das fontes naturais, seja tudo isso o que menos importa para o mundo continuar não apenas a girar, mas a produzir significados, no campo ou na cidade. Coisa que somente a cultura pode fazê-lo, como eco de um passado que expande sentidos estéticos e comunitários: no alimento recolhido da terra, no canto religioso africano, na língua indígena ou no vernáculo latino da prosa de um violeiro. "Deixemos de coisas, cuidemos da vida, Senão chega a morte ou coisa parecida, E nos arrasta moço sem ter visto a vida" (Belchior, Na hora do almoço, 1974).

domingo, 12 de abril de 2020

O passado de uma ilusão


O que acontece quando uma pandemia atinge uma sociedade doente?


“Cuzão que não concorda c’o holocausto brasileiro,
Vive no condomínio, limpa o rabo com dinheiro.”
Facção central, A marcha fúnebre prossegue


Angelo Agostini, O carnaval de 1876
Charge para a Revista Illustrada
(Febre amarela, detalhe inscrito na roupa mortuária)



   Vivemos em uma sociedade doente. Essa doença tem um nome simples: ‘desigualdade extrema’. O nome é simples, mas são diversas e complexas as suas características, dentre elas: o racismo estrutural crônico, a insensibilidade moral endêmica e o colonialismo intelectual congênito. O Covid-19, como séria doença biológica, se alastra em uma sociedade que padece de uma séria doença social, e, na realidade, tanto permite tornar essa patologia social muito mais visível quanto, infelizmente, já dá mostras de que irá agravá-la, especialmente por conta da depressão econômico-social que já se insinua. Assim como o vírus pode se tornar mais sério e levar à morte os indivíduos contaminados que possuem doenças crônicas anteriores (as atualmente chamadas ‘comorbidades’), podemos prever que, no campo coletivo, a pandemia gerará efeitos econômico-sociais ainda mais nefastos quando afeta nossa população, que padece de sérias comorbidades sociais prévias. Portanto, a grave situação de saúde pela qual estamos passando se agrava ainda mais quando se soma a uma grave situação social, ocultada no imaginário social, especialmente da maioria conservadora e protofascista da classe média, não apenas por seu perfil econômico, mas também por sua função social primária de ‘capitão do mato’ entre a ínfima elite da ‘Casa grande’ e a maioria da população que habita a ‘Senzala’. 
   Há várias causas de nossa doença socioeconômica, a desigualdade extrema; mas é sobretudo aquilo que podemos chamar de totalitarismo de oligopólios sua causa principal. A definição mais simples desse totalitarismo é: a mega-acumulação de riquezas nas mãos de uma ínfima parcela da sociedade, o que não pode ser feito sem violência em massa e manipulação de significados dos fatos sociais compartilhados. Note-se: a acumulação de riquezas não se resume à acumulação financeira a níveis estratosféricos (incluindo aí o sequestro de quase metade do orçamento para pagamento de uma dívida pública nunca auditada), mas também a acumulação agrária (metade das terras agricultáveis na mão de menos de um por cento dos proprietários), a acumulação imobiliária (que alimenta tanto as condições horríveis das periferias quanto aumenta a população dos sem-teto), a acumulação midiática (a maioria dos meios de comunicação de massa na mão de poucas famílias e corporações), a acumulação intelectual (boa parte da população não tem acesso ao conhecimento), dentre outras formas de acumulação que seria ocioso mencionar aqui. Em suma: vivemos no país dos mega-oligopólios. 
   E se alguns descarados dizem que não somos os país mais desigual do mundo segundo certos rankings, nós certamente somos o país mais desigual do mundo quando consideradas as riquezas do país, concentradas em sua maior parte nas mãos de menos de 1% da população. Os frágeis atenuantes dessa desigualdade obtidos nos últimos cem anos através de lutas sociais duras estão sendo destruídos pela implantação do neoliberalismo em nosso país desde o governo do traidor da sociologia, Fernando Henrique Cardoso; uma implantação que teve um ritmo atenuado nos governos petistas, mas que voltou com multiplicada violência nos governos Temer-Bolsonaro. A união entre as diversas camadas das políticas de morte (necropolítica), aplicadas sobremodo aos excluídos, e das diversas camadas das políticas de manipulação de significados (semiopolítica), aplicadas a todas as camadas da população, poderia ser chamada, no caso brasileiro, de necroliberalismo: a aplicação do capitalismo neoliberal (que, em essência, promove a desigualdade) em um país já assolado por extrema desigualdade, a qual resulta na mais nova forma do totalitarismo dos oligopólios, regime tirânico que representa os cinco séculos de genocídio em massa da população pobre, seja esse genocídio praticado pela exclusão, seja pela violência estatal ou privada de todos os tipos, desde a intimidação psicológica até o assassinato em massa. 
   O modo como setores do governo e da sociedade brasileira estão lidando com a pandemia de Coronavírus é um espelho que reflete com uma clareza repugnante a doença social que já estava implantada em nossa sociedade. Diferente do que uma parte hipócrita das mídias pretende dizer (por puro interesse próprio), o atual governo é o mais legítimo representante do necroliberalismo brasileiro, ou seja, da última versão do totalitarismo oligopolista que tem assassinado direta ou indiretamente milhões de pessoas desde a chegada dos colonizadores europeus. A novidade do atual cenário consiste no fato de que, com a depressão econômico-social que se aproxima, as políticas de empobrecimento da classe média, que vinham sendo implementadas a conta gotas desde FHC, serão agora aceleradas, principalmente via sistema financeiro. 
   Com a eclosão da pandemia do Coronavírus, revela-se uma realidade nua, crua e indigesta: a parcela majoritária da classe média brasileira, de feição conservadora e protofascista – parcela que travestiu o gozo sádico de seu ódio aos pobres no discurso moralista da anticorrupção lavajatista que culminou no golpe de 2016 – irá agora pagar caro (com a vida ou com o bolso) por ter requentado a azeda versão “tradição, família e propriedade” da sociedade brasileira. Para além dos incontáveis mortos pela pandemia (número aumentado pelas práticas genocidas que emanam do planalto), essa classe média irá amargar um período de séria depressão econômica (e, por certo, psicológica) que se seguirá inevitavelmente à pandemia. Os estados de outros países, tão admirados de modo basbaque por essa mesma classe média, estão implementando uma multidão de medidas para atenuar a inevitável depressão econômica. Em lugar de fazer o mesmo, e sendo coerente com sua crueldade secular, o estado brasileiro, como extensão direta de nossa elite genocida, está implementando medidas que claramente protegem e até ampliam, por transações financeiras escabrosas, a mega-acumulação de riquezas. Nesse sentido, assim como a pandemia de Covid-19 atinge virtualmente a totalidade da população e não, como outras doenças, apenas suas camadas mais pobres, assim também, a depressão econômica em sua configuração brasileira (agravada ao extremo pela elite nacional) não apenas atingirá de modo duríssimo os excluídos que compõem de 70 a 80% dos brasileiros, mas também atingirá em cheio a parte mais baixa da classe média, ou seja, sua maioria. 
   Não nos enganemos com a ladainha anunciada dia e noite pelas mídias hegemônicas e pelas redes sociais: o choro de carpideiras segundo o qual todos sofrerão e terão de fazer o seu sacrifício para o bem da nação. Para o tão célebre quanto oculto 1%, esta pandemia será uma pedra filosofal capaz de transformar morte em ouro, em um tipo horrendo de ritual para santificar e esconder mais um de seus assaltos à riqueza gerada pelos outros 99%. É o baixo clero de grotescas figuras dessa elite quem exprime seu real pensamento: alguns milhares de mortos (afinal, em sua maioria idosos) são um “baixo custo” para manter o moedor de carne humana da economia neoliberal. Contudo, o alto clero dessa mesma elite, embora simpatizando intimamente com o pensamento daqueles outros, sabe que há várias razões pelas quais as medidas de isolamento são economicamente aceitáveis e, se bem conduzidas, bastante rentáveis para o terraço do edifício social brasileiro. Dentre estas razões estão: (1) é mais fácil manter seu poder econômico e social ao dizer mentirosamente que a vida está acima da economia do que declarando claramente o inverso; (2) as falências em massa abrem espaço para o reordenamento, ampliação e surgimento de monopólios; e, sobretudo, (3) as “dívidas de guerra” são a justificativa irrecusável para medidas econômicas mais duras que permitirão, especialmente através de tenebrosas transações trabalhistas, contábeis e financeiras, concentrar ainda mais a riqueza e “expurgar” os mais fracos de dentro de sua classe, abrindo mais espaço para a acumulação e para os sempre bem-vindos colonizadores (“investidores”) estrangeiros. Por fim, mas não menos importante, (4) a quarentena das massas, milimetricamente regada com alguma esmola emergencial para sua parte mais vulnerável, e controlada com algumas medidas de endividamento da classe média, evita profilaticamente que, caso a pandemia fosse deixada à solta, essa multidão doente e depauperada tomasse a desagradável decisão de fazer barulho nos portões de Versailles, ou, movida pelo ódio justo, ousasse pôr em prática alguma indesejável Queda da Bastilha, o que exigiria ainda mais dinheiro para pagar polícias, milícias, milicos, advogados e juízes em nome da necessária “garantia da lei e a da ordem”, bem como para consertar algumas de suas propriedades danificadas. 
   Essas indicações mostram como o necroliberalismo brasileiro (associação diabólica entre necropolítica e semiopolítica) se estenderá rapidamente da parte mais pobre da população para uma parte ainda indeterminada daqueles que atualmente fazem ou acreditam fazer parte da classe média. Horrorosa ironia da história brasileira: o Coronavírus, elemento de morte concreta, revela as entranhas podres do necroliberalismo brasileiro em suas políticas de morte (violenta ou socioeconômica) e suas políticas de deformação de significados que agora usam as metáforas da guerra à pandemia para realizar, na realidade, uma guerra da elite (através de seus prepostos políticos, jurídicos e midiáticos) contra a grande maioria da população brasileira. Portanto, na intensificação e ampliação das políticas necroliberais que já estão em curso, uma parcela ainda indefinida da classe média que odeia os pobres terá, na expressão de Achille Mbembe, o seu “dia de negro”. O terror psicológico que o vírus biológico impõe a toda a população é uma metáfora perversa e profética do terror socioeconômico que se abaterá sobre a maioria da população, lançada em um nível de escravidão financeira sem precedentes em nosso país e, provavelmente, dentre os países ditos em desenvolvimento. Para quem não acredita nesse provável futuro dantesco, basta comparar com atenção as atuais e futuras medidas de precarização do trabalho e da renda, a falta de políticas de crédito para micro, pequenas e médias empresas (inclusive com o aumento dos juros por parte dos bancos) com as rápidas medidas de “salvamento” do sistema financeiro, incluindo a obscena medida que permite a compra dos “papéis podres” (ou seja, dos prejuízos) das instituições financeiras pelo Banco Central sem nenhuma contrapartida econômica ou social destas mesmas instituições. 
   Talvez uma parte da classe média conservadora e protofascista que apoiou e apoia o atual governo aprenda pelo sofrimento algo acerca da hedionda crueldade da elite brasileira, embora isso seja improvável, uma vez que a estupidez, a partir de certo estágio, perde as próprias condições de reconhecer a si mesma. No que tange à parte mais progressista desta mesma classe, uma perigosa narrativa ingênua (talvez formada para evitar o desespero ou a depressão) já circula: a ilusão de que, por alguma confluência astral miraculosa, a atual pandemia produziria, como que por geração espontânea ou mutação mística da consciência moral, o colapso do capitalismo mundial e do necroliberalismo tropical. A realidade indica exatamente o oposto: a maioria da sociedade dilacerada pela depressão econômica e pelo luto da pandemia clamará com redobrado desespero ao deus Mercado pelo retorno do crescimento econômico incondicional e aceitará pagar uma dívida duplamente impagável, impregnando-se dos estúpidos e simplórios bordões fascistas que oferecem inimigos imaginários para aliviar seus sofrimentos reais. E enquanto os cardeais do Mercado estiverem gozando em concílio a sublime podridão de seus lucros recordes, será uma parte dessa mesma classe média depauperada pela depressão econômica e psicológica pós-pandemia que se ajoelhará, brandindo as mãos juntas, para trabalhar e consumir, em fervorosa servidão voluntária, beijando os pés dos seus carrascos e torturadores. Em lugar de esperar por uma mágica transformação do necroliberalismo brasileiro, a parcela progressista minoritária da classe média deveria, finalmente, chegar ao que Max Weber chamou de característica fundamental da modernidade: o desencantamento do mundo. Em nosso contexto isso significa: encarar a estrutura totalitária da sociedade brasileira e sua causa primária: a mega-acumulação de riquezas, esforçando-se para agir politicamente na direção de derrubar essa tirania, antes que seja tarde demais, se já não o for...
   O discurso e as práticas políticas genocidas exaltados e postos em ação pelo atual presidente e seus lacaios em relação à tragédia humanitária que está em curso entre nós desenham em traços grotescos a face mais visível do latente discurso e das práticas genocidas da elite brasileira, que já estão em curso há cinco séculos. No cenário atual, para preservar e ampliar seus oligopólios, a elite brasileira está impondo medidas econômicas e políticas que multiplicarão a depressão econômica desencadeada pela pandemia. Se atualmente a maioria da classe média consegue se defender do Coronavírus por meio de suas maiores ou menores possibilidades de isolamento, em breve a destruição social implementada pelo egoísmo criminoso da elite alcançará também estes, agravando ao extremo a doença crônica da sociedade brasileira: a desigualdade. Os atuais donos da Casa Grande lançarão também uma parte da classe média que os serviu, os admirou, os imitou e os defendeu na Senzala ou na vala comum. Em 2022 o calendário marcará os duzentos anos do ambíguo nascimento de um estado. Para quem tenha conseguido preservar ainda alguma sanidade mental, meditar sobre o passado de nossas ilusões conduzirá talvez a uma moral da história: a comemoração do bicentenário de nossa frágil independência será um espetáculo de luto e melancolia...


Nazareno Eduardo de Almeida 
Professor de Filosofia 
Centro de Ciências Humanas
UFSC

domingo, 29 de março de 2020

Anotações de quarentena II


Akira Kurosawa, Sonhos (episódio O túnel), 1990


"Sob esse ponto de vista, a atmosfera de nossa cidade modificou-se um pouco. A questão, porém, é saber se na verdade a modificação estava na atmosfera ou nos corações.”

Albert Camus, A peste, 1947


A conversa volta para o assunto do dia, da hora, de todas as horas. Como uma espécie de pedra por cujo peso Sísifo pode a qualquer instante ser esmagado. As tensões familiares também retornam, tão intensas por vezes como na última eleição. Que nos acontece afinal? Quando a morte serve de princípio à gestão pública, o vírus governa a favor, e este é nosso maior risco atualmente. Não se reconhece um inimigo em comum, nega-se o grau de sua ofensiva, e ele avança. Naturaliza-se a morte na mesma medida em que se despreza o contágio. Marx fala de um exército industrial de reserva: a força de trabalho excedente à produção garante o acúmulo do capital, justifica os baixos salários e, sobretudo, a massa de desempregados, o exército de reserva do mercado. O desprezo ao contágio, em nossa necropolítica tropical, garante uma reserva de mortos ao lado dos desempregados. O milagre de se estar vivo dá a coragem para se submeter às piores condições de trabalho. Para aquele que detêm o capital e os meios de produção, não se pode deixar de lucrar, ainda que se permita morrer. Por isso a campanha O Brasil não pode parar. Um discurso cujo caráter motivacional é perigosamente bizarro neste momento. O tom cinicamente solidário dirigido ao trabalhador, a suposta preocupação com sua fome, nesta propaganda, retira justamente a responsabilidade do Estado, a obrigação de protegê-lo, ao mesmo tempo que o lança ao suicídio como herói da pátria, inviolável a uma pandemia. A questão é: entre a promessa de desenvolvimento da nação e o lucro dos ricos, quem está disposto a morrer ou quem, pela sobrevivência, já não tem escolha porque nunca lhe foi dada? Por isso pode bem facilmente o trabalhador repetir o discurso suicida oficial e até mesmo se colocar na figura do herói, ou mais modestamente relutar contra o que passa a julgar covardia. Pode de manhã se culpar pelo risco de perder o emprego, à tarde achar que é só uma gripezinha e atender uma encomenda, à noite evitar o contato com seus filhos e ter pesadelos com o vírus. Como exigir coerência dos sobreviventes neste momento? Em nome da economia, o governo não precisa diretamente matar, antes, deixa morrer. A compra anunciada pelo ministro da educação de 450 milhões de álcool em gel para as escolas se afina a essa política da morte em dois sentidos: justifica o retorno das crianças aos colégios e autoriza a contaminação em série de quem estuda e trabalha no local. Deixa-se morrer, no limite, a própria escola, sobretudo as escolas públicas. Neste sentido, a emenda constitucional que prevê o congelamento dos investimentos públicos nas áreas de educação e saúde, aprovada ainda no governo Temer, logo após o golpe, e mantida pelo governo atual, é metaforicamente epidêmica, antes de o covid-19 vingar entre nós. A falência dos sistemas públicos de saúde, o recente e brutal cortes de bolsas de pesquisa das universidades, tudo isso não é apenas efeito da contenção de gastos e despesas, mas um projeto da elite para discriminar quem pode vender e quem pode pagar, seja lá o que for, diplomas, coachings ou planos de saúde. O vírus é a necropolítica continuada por outros meios. E o neoliberalismo uma das condições para essa política fundada na iminência da morte, e não na esperança de vida. O Estado mínimo permite ao Mercado máximo a escolha dos corpos que irão lucrar ou trabalhar, enriquecer ou morrer. O que vale afinal quando somos todas e todos ameaçados, quando respirar se torna uma dádiva? Que economia é esta que se defende a unhas e dentes patrióticos, quando apenas o patrão cumpre a quarentena ou sequer mora no Brasil? Que  discursos e poderes nos resigna como operários e por que parece surda a nossa voz para exigir o direito de se ficar em casa como dever urgentemente coletivo? Se milhões de autônomos já sobrevivem normalmente no limbo pandemônico, entre a falta de emprego ou o baixo salário, o que acontece agora se o Estado não os sustenta por uma renda mínima? Por que não redistribuir o lucro dos bancos, cujos funcionários retomam seus expedientes, enquanto seus acionistas mantêm higienizadas as mãos pelos juros garantidos? Em breve, se não nos cuidarmos e resistirmos como sociedade, contaremos com um grande exército de reserva ao lado dos leitos hospitalares. Como aquele pelotão nos Sonhos de Akira Kurosawa. Obedientes mas também obstinados, os soldados seguem o comandante, querem voltar às suas casas. Estão azuis, quase cinzas, com profundas olheiras de caveira. O comandante se comove por eles, diz ter sido preso pelo inimigo, lamenta e se culpa pela derrota: “Vocês são chamados de heróis, mas morreram como cães".

Jason de Lima e Silva

Publicado também na 
https://www.cartamaior.com.br/?/Especial/A-Pandemia-do-Capitalismo/Anotacoes-de-quarentena/251/46985

sábado, 21 de março de 2020

Anotações de quarentena I


Albrecht Dürer, Os quatro cavaleiros
do apocalipse (Morte, Fome, Peste e Guerra)
c.1497

Até para a mais perfeita beleza o desastre é lento. Mas não me parece justo contar sempre com o pior. A regularidade mede a vida. A regularidade da comida, por mais que não se pense no que se come ou como se mastiga o que se come. A regularidade dos prazeres, sensuais, afetivos, lúdicos ou intelectuais. A regularidade do trabalho e dos exercícios físicos. A permanência de um amor e mesmo a repetição de um conflito. O tédio pode servir quase de método para uma existência. Para o tédio a vida sempre se volta, no ócio de todas as suas regularidades cumpridas. Alegria também se sente, claro, pela simples razão de se cumprir um método pessoal para se viver, embora o tédio das horas livres pareça dar mais suporte à guinada da sorte do que o estado eufórico das ocupações ordinárias. Pretender antecipar o pior, em contrapartida, é desprezar a potência originária de seu significado, a do inesperado. Porque mesmo que se espere o pior que se possa imaginar, a reação frente ao fenômeno não pode ser calculada, uma vez que é impossível prever a circunstância, tanto de alma quanto de mundo, com base nas quais o fenômeno foi possível, e menos ainda as consequências de um acontecimento que, por si mesmo, já parecia insuportável. Temer desde sempre também exaure as forças humanas. Temer o que se esperaria de mal, temer o não previsto, tudo isso cansa demasiado o corpo e o espírito. Na maior parte das vezes, mesmo nas piores condições, o animal humano tem esperança. Esperança na redenção de algum deus ou na descoberta de um remédio contra uma ameaça ou dor iminente. O mais provável é se viver com aquilo com o que já se tem, segundo a força dos hábitos, no horizonte da fartura ou da escassez. Esperar muito é sofrer não ter jamais o que se espera. Porém, não esperar coisa alguma é como secar um rio e cobrir de cimento a fonte de todo entusiasmo. Que significa agora "atingir metas", "crescer economicamente" em termos individuais ou coletivos? Ainda se precisa comer e respirar. Quando se volta para si, na obrigação de ficar em casa, o maior risco é não encontrar nada. Ainda se precisa da cultura para matar a fome da alma e respirar boas ideias sobre o árido chão da terra. O humano ainda precisa do humano, a saudade de um afeto não completamente vertido sobre o coração, o hálito de uma história, o jogo, a brincadeira, o riso estrondoso, eco de seu próprio desespero.

Jason de Lima e Silva 

domingo, 4 de agosto de 2019

Mundo doido

A mim me pergunto
Que mundo doido esse
Traz o progresso no colo
Mas na morte investe
É veneno no solo
Vaticínio da peste
A mim me pergunto
Que mundo doido...
Inventaram o apocalípse
Prenderam o presidente
Ninguém vê, minha gente?
É juiz é procurador
Tudo amigo o mesmo complô
Pátria nossa quanta inversão
Quem condena é o ladrão
A mim me pergunto
Nunca houve ditadura
Nem racismo
Nem nada disso
Balela de comunista
O maldito, o postiço
A Terra é plana até na China
Mas uma coisa verdade
Pra eles tudo
Pra nós a latrina
Seu Deus acima de todos
É o rico em cima do pobre
Quem pode pode
Legalmente sorve
Nióbio, ouro e cobre
Neste mundo de ponta-cabeça
Com pressa de sucesso
O indígena é retrocesso
O carroceiro empreendedor
Perseguido o professor
O petróleo dão pros gringo
A Amazônia vira bingo
O certo tá do avesso
O avesso tá um vexame
A crença mata a ciência
E quem ensina é o pastor
Fim dos tempos dá dinheiro
Teologia da escravidão
Aposentadoria uma ilusão
A mim me pergunto
Que mundo doido é este
Ou a curva nasceu reta
Ou o direito é mesmo torto
Cruza a nau desgovernada
Esse poço sem fundo
Nosso Brasil profundo

Jason de Lima e Silva