quinta-feira, 23 de maio de 2013

O sonho de Cassandra: uma tragédia de Woody Allen


“Escuta: eu ouso, sim, / Tudo o que pode ousar um homem. Crê-me bem. / Mas homem não será o que for mais além”.
W. Shakespeare, Macbeth, c.1610
“—Não quero voltar... Precisamos olhar para o futuro”.
—Mas estamos ultrapassando os limites e não há volta para isso. Eu já disse”
W. Allen, O sonho de Cassandra, 2007
É comum nas tragédias antigas e modernas o anúncio do que inevitavelmente haverá de se impor, apesar de tudo estar aparentemente sob controle e de sempre supor o homem que seu pensamento pode de algum modo destinar o que lhe acontece. O sonho de Cassandra de Woody Allen parece ser um bom filme para pensarmos a condição trágica da própria existência. “Acho que podemos fazer o nosso próprio destino”, diz o personagem Ian à atriz pela qual se sente atraído, e quanto mais se ilude e mais a ilude para mantê-la atraída, menos parece ser dono de seu próprio destino. A condição trágica da existência não se reduz ao fato de um dia morrermos, ideia por si muitas vezes desagradável. O trágico está mais no fato  de continuarmos vivos do que no fado de um dia morrermos. Continuar vivo significa ter de escolher, selecionar o preferível no possível, mesmo que não o queiramos ou tenhamos de escolher o que ainda é um problema. Se na maior parte das vezes apenas respondemos ao que acontece, em alguns momentos, decidimos, e decidir quer dizer cindir em dois, o que era e o que deixou de ser, e assim, separar-se do fluxo contínuo das ações para arriscar um novo começo. E isso nunca é fácil: há sempre o lamento de não termos feito o que poderíamos ou o perigo de não termos querido o que já fizemos. Sem sonhos não vivemos, mas a obediência a uma única ilusão também pode nos matar lentamente. Ou seríamos capazes de matar o outro para não perdê-la?



O filme coloca esse problema, na representação de uma história que começa com a imagem de um barco, O sonho de Cassandra, objeto de desejo dos irmãos Terry e Ian, um mecânico e jogador da sorte, o outro gerente de um restaurante de sua família, restaurante pelo qual não sente nenhum apego e por isso afirma a si mesmo na imagem de um homem de negócios de hotéis na Califórnia, para onde sua ilusão também o destina. Ambos os irmãos se sentem um fracasso e realmente fracassam em muitos de seus lances, e essa consciência os lança ainda mais longe, pois não querem perder: “Acho que tenho a mão vencedora”, diz um deles, “quero ir em frente, arriscar a sorte”. E para não perder fazem de tudo para convencer um ao outro que o único caminho é aquele que a sorte lhes oferece, a sorte de um tio rico. O valor da família atravessa todas essas relações: aparece na fala da mãe à mesa, aparece na fala do tio quando impõe o trato, na fala dos irmãos entre si. É recorrente também o valor de alguém em razão de se ter coisas e de se poder ter mais coisas neste mundo. O barco, O sonho de Cassandra, eles conseguem comprar, mas não compreendem o terrível preço que se ocultou na sorte que lhes deu o barco e tantas outras coisas. Cassandra, aliás, é o nome da personagem troiana que a contragosto possui o dom de profetizar e não ser levada a sério: maldição do deus Apolo que a desejou sem ser desejado. Cassandra aparece na tragédia Agamenôn de Ésquilo, por exemplo, quando em Argos, ao chegar de sua terra nas embarcações gregas, prevê a morte do rei e sua própria morte: “É triste e sem remédio a sorte dos mortais... / Esboça-se a ventura em traços imprecisos; / os males chegam logo, como esponja úmida, / e num instante apagam para sempre o quadro”.
O barco no filme é o quadro que circula como um oráculo entre o início e o fim do drama de dois irmãos e em torno dos quais cada personagem se move pela inconsciência do próprio viver, por paixões e valores que tomam por verdadeiros, ou para sustentar uma família, ou para se sentir alguém de sucesso. “O que você está pensando?”, pergunta Terry a Ian, “O que passou, passou. Nós fizemos e acabou. E é sempre agora”. (That then was then.  We’ve done it and it’s over. And it’s aways now). Na tragédia de Shakespeare, Lady Macbeth irá dizer a seu marido após o assassinato do rei: “O que está feito está feito (What’s done is done) e, mais adiante, quando já não mais suporta a razão do que foi feito sem o pesar de seus efeitos, Lady Macbeth irá se repetir: “O que está feito não pode ser defeito” (What’s done cannot be undone”). E quem é capaz de suportar a ilusão de uma única vida sem negar a si mesmo, e de si mesmo, o que foi feito da sorte e o que se fez das circunstâncias, quando não há volta para o que nos acontece?

Jason de Lima e Silva

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