quinta-feira, 7 de novembro de 2013





Como viajar sem se perder? Uma viagem antecipadamente pronta é tão segura quanto uma TV cujos programas escolhemos sem ver, quando o importante é não ser perturbado na abstração dos ruídos e das imagens. Tal viagem não passa de um deslocamento provisório da plena repetição dos dias comuns, com alguma curiosidade ao paladar, para não lamentarmos também tudo querer e nada fazer sentido. Ao menos, podemos guardar nas malas o vazio de nossos íntimos e compartilhar apenas os cartões postais de uma felicidade representada. Afinal, quem de fato está preparado para cultivar os mais simples gestos do mundo com outros e, ao mesmo tempo, viver os perigos a nos dar sempre e gratuitamente a vida, só para nos devolver seu gosto? O breve tempo de nossa passagem no espetáculo vivo dos lugares distantes nos coloca à cena o personagem que sobe ao palco para um dia deixar o mundo: sem ter a chance de refazer o drama. E assim é a vida, diz para si o viajante, em sua terra ou fora dela: tudo é efêmero. Perder-se é poder contemplar o contínuo sonho das coisas nos seus devidos lugares e mais uma vez experimentar a razão de nada mais voltar a ser como era antes. E nem nós sermos mais os mesmos.


Jason de Lima e Silva




Crônica de uma viagem inventada



Em Porto, paramos à frente da igreja da Sé, eu e meu amigo. A paisagem adiante era a de uma cidade sonhada, na qual tudo se encaixava, azulejo sobre azulejo, varal sobre varal, casario sobre casario, rústicos vermelhos e amarelos, com suas ruelas imperfeitas que se encontravam perfeitamente no caminho das pedras em ladeiras sem fim, sob escadarias solitárias e janelas em arcos de pedra. Eu havia de fato sonhado com a cidade há duas noites, ainda em Braga. E no sonho era noite. Suas casas, suas igrejas góticas e barrocas se moviam, seus palacetes e telhados de quatro águas, tudo se movimentava, morros e ladeiras subiam e desciam lentamente sob minha vista, e era preciso andar e chegar ao lugar certo na hora certa para nada se desencaixar, sobretudo quando repentinamente o movimento era interrompido. A cidade estava agora parada à nossa frente e nós nos lançamos escadaria abaixo, ao lado do átrio da Sé. Chegamos ao rio Douro



As embarcações são obras da natureza ou do homem? Os arcos da ponte metálica, os arcos de pedra da ponte medieval: tudo é um. Sentamos na ponta de uma mureta cujas pedras se alinhavam à distância. O rio seguia seu fluxo como um espelho de prata do céu nublado. Acendemos uma cigarrilha para admirar a cena e tomar fôlego, enquanto um casal de senhores nórdicos se aproximou. Trocamos uma dezena de palavras pelos olhos, sorrimos e nos acenamos. Seguimos a andança pelo cais, eu e o amigo, a ponte de aço se erguia como uma aranha metálica sobre nossas cabeças. Sentimos sede e nos entendemos silenciosamente sobre a necessidade de água quando, pelo instante de uma eternidade, me vi dentro de um sonho que não era o meu sonho, mas o sonho que jamais havia sido sonhado por qualquer alguém, por qualquer eu convicto de si mesmo, porque era justo o sonho de todas as vidas humanas. Era preciso firmar o passo naquele mundo de fantasmas que era a mais íntima realidade da existência, a ilusão de todas as esperas, a inquietação de todas as horas, a carência e o malogro de tudo, série de coincidências sem sentido, forças sem efeito, coisas que se perdem aqui e se encontram acolá. Era preciso firmar o passo de alguém que estava dentro desse sonho e seguia os passos de alguém sonhado a procura também de algo que se perdia. Água! Nem a sede mais me era real. O real: fragmento de chumbo de todas as consciências estilhaçadas, cristalina ficção e fixação de nossos sentidos. Firmar o passo atrás daquele personagem não garantiu ao personagem que o seguia a fortaleza contra a sensação de que qualquer coisa poderia ali acontecer, voar sobre o profundo silêncio daquela cidade misteriosa ou apenas se livrar imediatamente do maldito sonho, sentar-se num banco qualquer e gritar com toda energia para se acordar de vez, e apertar o próprio o corpo e agarrar-se à memória de uma vida pacata e à lembrança de um minguado de gente que lhe quer bem e jamais sonhou vê-lo enforcado. É preciso arrancar à força a corda que o mundo nos põe ao pescoço, mas é preciso senti-la muito bem antes de querer morrer. Identificamos a placa de uma loja de conveniências naquele sonho. O cara que nos atendeu assobiava uma melodia pop conhecida, com  tanta leveza de alma que compreendi a verdadeira razão da água neste universo. Atravessei porta de vidro afora e me deitei no primeiro banco de pedra para assim me saber num cais de uma cidade do mundo que falava a minha língua e me trazia o sangue dos mouros, o ruído de seus comércios e a visão dos franciscanos decapitados e das catacumbas de padres na igreja do outro lado da ponte, quando então senti os olhos suavemente queimados pela breve claridade do dia e reconheci meu amigo e a água oferecida que a cada gole me fazia mais vivo do que nunca, e mais uma vez, estranho o bastante para toda uma vida. 


Jason de Lima e Silva