sábado, 27 de abril de 2013

Shakespeare, Macbeth e Polanski


                                         




"A vida é sombra passageira. / Um pobre ator que chega, agita a cena inteira, / Diz seu papel e sai. / E ninguém mais o nota. / É um conto narrado por um idiota, / Cheio de sons, de fúria e não dizendo nada".
Shakespeare, Macbeth, c.1611





“Nenhuma arte revela / como havemos de ver, na face, por inteiro, / A natureza da alma. Ele era um cavalheiro / Em que muito confiei”. Quem diz isso é Duncan, o rei de toda a Escócia. O rei está com sua escolta, recém seus exércitos enfrentaram o rei da Noruega, por pouco não sucumbem em razão de um traidor, senhor de Cawdor, a quem o rei dirige a frase, o cavalheiro em quem o rei muito confiou. Se a arte é própria do humano, que arte é capaz de revelar completamente quem somos? quem somos a uns e outros? É ingenuidade pensar que sempre seremos os mesmos para uns e outros, e para nós mesmos. E é por isso que podemos melhorar e piorar como seres humanos, a qualquer tempo, no pensamento mais gratuito ou na ação mais calculada. A evidência da traição do senhor de Cawdor coincide com a repetição de um nome, cujos testemunhos fazem coro a sua coragem e avivam seu sucesso na tropa contra os noruegueses: Macbeth.
A arte da tragédia revela, em boa medida, a contradição que move nossas vidas e que silenciosamente remove nossos corações. “O belo é feio e o feio é belo”, diz uma das bruxas no início da peça. O trágico da vida não é a morte, mas a não coincidência entre o que pensamos e o que acontece em nossa vida, tensão entre o que desejamos e o que podemos a cada tempo. Macbeth, com seu companheiro Bancho, mais adiante dirá: “Nunca vi dia assim, a um tempo belo e feio”, no momento em que encontram as bruxas e é anunciada a profecia por diferentes vozes, Salve Macbeth, tu de Glamis já herdeiro / Salve Macbeth, tu nobre Cawdor também/ E também serás rei! Se uma parte de nós sempre aparece, e aparece a cada vez que vivemos com outros e falamos e brincamos e pedimos ou esperamos, outra parte de nós permanece oculta, porque se modifica, é movida por impulsos dados a cada circunstância, podem nos surpreender e também nos escapar: são nossos quereres sem fim, que sempre querem mais e que sofrem algumas vezes por não saber o que exatamente podem querer, nem o que de fato querem poder, ou melhor, o que suportam poder. “Estrelas, apagai vossa luz, apagai. / Que a vossa luz não veja, estrelas, o que vai / De negro e de profundo em meu desejo”, pensa Macbeth, após a proclamação do primogênito do rei como príncipe de Cumberlândia. Macbeth já é senhor de Glamis. Seu sucesso na guerra, simultaneamente à traição do senhor de Cawdor, lhe confere também esse título, já no início do drama. Com tal poderio, Macbeth está a um passo de ser rei, o oráculo das bruxas o acusam, Glamis, Cawdor e rei por fim, rei de toda a Escócia. “Tenho medo, no entanto, / Da tua natureza”, diz sua esposa, Lady Macbeth, “Está cheia, a fartar, / Do leite da ternura humana para achar / Um caminho mais curto. E tu queres ser grande / Não te falta ambição que em tua alma se expande / Mas tu não tens, Macbeth, a precisa maldade”. Macbeth, um homem terno, um guerreiro virtuoso. E a esposa não deixa de provocá-lo, assim como seus próprios desejos intimamente já o provocam, é só mais um passo, um passo que o coloca no conflito entre a coragem do soldado ambicioso e o medo que faz de seu poder o princípio de uma morte sem fim. Por isso o rei Duncan nunca pára de sangrar, por isso os mortos voltam, sempre voltam durante a peça para assombrar Macbeth e sua bela senhora. A loucura se torna a conversão de um poder que não mais se domina, porque dominado pelo medo de perdê-lo. Claro, o fato de se estar no poder não garante o governo, nem de si, nem de outros, e se o rei perde o domínio de si, sob o signo de um poder que o centraliza tanto na paz quanto na guerra, como manter soberanamente o governo dos outros, entre o céu e a terra? Profecia e ato se alternam e se complementam perfeitamente sob a égide de um destino sem autor, porque todos são atores de uma catástrofe em comum. Haverá redenção possível?
A tragédia Macbeth foi escrita por volta de 1611. O filme Macbeth de Polanski é de 1971. O filme está à altura da peça. De um realismo, é certo, mais realista do que a tragédia: o que a tragédia oculta, por vezes o filme mostra. As virtudes do teatro antigo não comprometem as do cinema, e o cinema quer mostrar cada vez mais o que pode. Polanski repete a beleza dos versos shakesperianos, abre cenas que parecem quadros que abrem pinturas, o belo e o terrível, e mostra o suficientemente para não trair a si mesmo e seu cinema contemporâneo, nem, por outro lado, comprometer a inteligência dramática do teatro de Shakespeare. Sem exatamente enumerar, penso serem os que seguem pontos fundamentais para um debate sobre o filme e a tragédia no nosso tempo: Se mais poder é poder mais, é possível suportar sempre o que se pode? As paixões, como a ambição e o medo, também não podem sobre nós a ponto de nem mais suportarmos poder, nem mais sabermos o que querer? A loucura do poder, nesse caso, não seria a conversão de um querer não poder mais, fadado à impossibilidade da reversão dos fatos, cujo único caminho acentua a contradição entre o ideal de nosso desejo e o real de não se poder desfazer o que foi feito? Se queremos do poder o começo de uma ação sempre adiante, à guisa de possibilidade sem fim, como aceitar o que já não podemos mudar, sem deixar de pensar no que ainda assim, de alguma maneira, o quisemos? “Esses atos não são para ser comentados / depois de feitos”, diz Lady Macbeth ao marido com as mãos ainda sujas de sangue, “pois nos farão tresloucados”.
Jason de Lima e Silva
Citações de SHAKESPEARE. Macbeth. Trad. Artur de Sales e J. Costa Neves. Rio de Janeiro: W.M. Jackson, 1970.