“Escuta:
eu ouso, sim, / Tudo o que pode ousar um homem. Crê-me bem. / Mas homem não
será o que for mais além”.
W.
Shakespeare, Macbeth, c.1610
“—Não
quero voltar... Precisamos olhar para o futuro”.
—Mas
estamos ultrapassando os limites e não há volta para isso. Eu já disse”
W.
Allen, O sonho de Cassandra, 2007
É
comum nas tragédias antigas e modernas o anúncio do que inevitavelmente haverá
de se impor, apesar de tudo estar aparentemente sob controle e de sempre supor
o homem que seu pensamento pode de algum modo destinar o que lhe acontece. O sonho de Cassandra de Woody Allen parece
ser um bom filme para pensarmos a condição trágica da própria existência. “Acho
que podemos fazer o nosso próprio destino”, diz o personagem Ian à atriz pela
qual se sente atraído, e quanto mais se ilude e mais a ilude para mantê-la
atraída, menos parece ser dono de seu próprio destino. A condição trágica da
existência não se reduz ao fato de um dia morrermos, ideia por si muitas vezes
desagradável. O trágico está mais no fato de continuarmos vivos do que no fado de um dia
morrermos. Continuar vivo significa ter de escolher, selecionar o preferível no
possível, mesmo que não o queiramos ou tenhamos de escolher o que ainda é um
problema. Se na maior parte das vezes apenas respondemos ao que acontece, em
alguns momentos, decidimos, e decidir quer dizer cindir em dois, o que era e o
que deixou de ser, e assim, separar-se do fluxo contínuo das ações para
arriscar um novo começo. E isso nunca é fácil: há sempre o lamento de não
termos feito o que poderíamos ou o perigo de não termos querido o que já
fizemos. Sem sonhos não vivemos, mas a obediência a uma única ilusão também
pode nos matar lentamente. Ou seríamos capazes de matar o outro para não
perdê-la?
O filme coloca esse
problema, na representação de uma história que começa com a imagem de um barco,
O sonho de Cassandra, objeto de
desejo dos irmãos Terry e Ian, um mecânico e jogador da sorte, o outro gerente
de um restaurante de sua família, restaurante pelo qual não sente nenhum apego
e por isso afirma a si mesmo na imagem de um homem de negócios de hotéis na
Califórnia, para onde sua ilusão também o destina. Ambos os irmãos se sentem um
fracasso e realmente fracassam em muitos de seus lances, e essa consciência os
lança ainda mais longe, pois não querem perder: “Acho que tenho a mão
vencedora”, diz um deles, “quero ir em frente, arriscar a sorte”. E para não
perder fazem de tudo para convencer um ao outro que o único caminho é aquele
que a sorte lhes oferece, a sorte de um tio rico. O valor da família atravessa todas
essas relações: aparece na fala da mãe à mesa, aparece na fala do tio quando
impõe o trato, na fala dos irmãos entre si. É recorrente também o valor de
alguém em razão de se ter coisas e de se poder ter mais coisas neste mundo. O
barco, O sonho de Cassandra, eles
conseguem comprar, mas não compreendem o terrível preço que se ocultou na sorte
que lhes deu o barco e tantas outras coisas. Cassandra, aliás, é o nome da personagem
troiana que a contragosto possui o dom de profetizar e não ser levada a sério:
maldição do deus Apolo que a desejou sem ser desejado. Cassandra aparece na
tragédia Agamenôn de Ésquilo, por
exemplo, quando em Argos, ao chegar de sua terra nas embarcações gregas, prevê a
morte do rei e sua própria morte: “É triste e sem remédio a sorte dos
mortais... / Esboça-se a ventura em traços imprecisos; / os males chegam logo,
como esponja úmida, / e num instante apagam para sempre o quadro”.
O barco no filme é o
quadro que circula como um oráculo entre o início e o fim do drama de dois
irmãos e em torno dos quais cada personagem se move pela inconsciência do
próprio viver, por paixões e valores que tomam por verdadeiros, ou para
sustentar uma família, ou para se sentir alguém de sucesso. “O que você está
pensando?”, pergunta Terry a Ian, “O que passou, passou. Nós fizemos e acabou.
E é sempre agora”. (That then was then. We’ve
done it and it’s over. And it’s aways now). Na tragédia de Shakespeare, Lady
Macbeth irá dizer a seu marido após o assassinato do rei: “O que está feito
está feito (What’s done is done) e, mais
adiante, quando já não mais suporta a razão do que foi feito sem o pesar de seus
efeitos, Lady Macbeth irá se repetir: “O que está feito não pode ser defeito” (What’s done cannot be undone”). E quem é
capaz de suportar a ilusão de uma única vida sem negar a si mesmo, e de si
mesmo, o que foi feito da sorte e o que se fez das circunstâncias, quando não
há volta para o que nos acontece?