quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

O monólogo do ódio



        Fala-se de crise no Brasil. Para isso há logicamente uma causa. Apressa-se a encontrá-la. A corrupção, sim, de quem? Do governo, e de seu partido, como se nele estivesse isolada a síndrome de nossa cultura e Eduardo Cunha nada enrascado por suas contas em bancos suíços. É preciso então expurgar esse governo do mundo. Ainda que justo o ímpeto, o raciocínio é tão simplório quanto grave pode ser o efeito. Primeiro porque não somos governados por um único poder. O poder político, no sistema de democrático moderno, organiza-se em poderes: o executivo, o legislativo e o judiciário, com seus privilégios e princípios, suas ordens e disputas. Mas há ainda o poder médico e o poder dos laboratórios na gestão da saúde e da doença, o poder financeiro na gestão das rendas e dos negócios, sem falar na mídia, cuja centralização no Brasil transforma a notícia em fato, o fato em verdade e a verdade em juízo de valor. Quem nos governa, afinal, e como somos governados?


        Desde as últimas eleições para presidente, odiamos e odiamo-nos em matéria de política. Como foi fabricado esse afeto, e por quais interesses? Chegamos a um ponto que um gesto contrário à reatividade vigente é à queima-roupa interrompido, por alguma notícia cuja fonte ou cuja interpretação não se discutem. Quem ouviu, já sabe, quem sabe, defini, quem defini, não ouve. Há um momento na Antígona de Sófocles que Hêmon diz ao poderoso rei Creonte: “Se falaste certo acerca das coisas não posso dizer... mas os outros podem ter boas ideias”. Cheio de razão, Creonte não escuta o filho e se dá mal. As tragédias gregas têm suas lições: se julgas tudo péssimo, espere o pior, se não ouves, terás de ver.

        Mas quando tudo está à mão, que vale saber dos outros? Compro, logo existo. Tenho, logo sou. Posso, logo digo. Digo, logo sei. A opinião é tão rápida e certeira quanto uma pedra na cara: não importa em quem se acerte. O diálogo demora: tenho de entender de onde parte meu interlocutor, avaliar as suas e as minhas deduções, considerar nossos limites em torno do assunto. Tudo isso é muito lento. E para que pensar os problemas políticos de uma sociedade, embrenhar-se nas suas contradições históricas e situá-la no cenário internacional, se já se reconhece a fonte de seu mal, como um santo reconheceria de longe o chifre do capeta? A brevidade das informações tem feito a abreviação das ideias. Juntamos tudo para repetirmos o mesmo. Pensar é ponderar, e ponderar exige ouvir, pressupõe abertura para a diferença. Reagimos e queremos ação para mudar o país. Mas a convicção parece ser o nosso maior perigo atualmente.


Jason de Lima e Silva

Publicado também em: http://ndonline.com.br/florianopolis/colunas/opiniao/294562-o-monologo-do-odio.html

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015


Deita-te herói e cubra teus olhos do sol
A dor em teu peito o mar a levará
E quando estiveres desperto colherás o fruto mais doce da Melancolia.

Assoprarás como pó todo o temor do peito
E se formarão nuvens para te suspender da terra
Mas quererás ficar na terra
Para sentir o cheiro das plantas
E receber a noite e seus fantasmas

E quando à praia subirem os enforcados
Acenda o fogo entre as pedras

E ouça o canto de quem não volta mais



Caspar David Friedrich, Pôr do sol sobre o mar, 1826




domingo, 8 de fevereiro de 2015

A dor do regresso e o olhar de Calipso

“Eu que acolhi-o carinhosamente, alimentei-o e afirmava que o havia de tornar imortal e que durante todos os seus dias seria preservado da velhice. Mas, visto não ser possível a nenhum dos deuses infringir sem efeito a vontade de Zeus, portador da égide, que se vá, por sobre o mar estéril...”.
“... e a veneranda ninfa foi ter com o magnânimo Ulisses. Encontrou-o assentado na praia. Nos seus olhos nunca se extinguia o pranto; ia-lhe decorrendo a vida a suspirar pelo regresso, pois a ninfa já não lhe era grata. As noites era obrigado a passá-las, mau grado seu, na côncava gruta, junto dela, que assim o desejava; e de dia permanecia assentado pelos rochedos da praia, a consumir o peito com lágrimas, suspiros e aflições. Ali chorava contemplando o mar estéril”

Homero, Odisseia, rapsódia V (Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1980).