Na noite do dia 17 de abril,
quando a câmara votava o impedimento presidencial, alguns amigos me diziam já
ter vomitado. Era claro uma força de expressão. Fraco meu estômago, evitei ver
o que acontecia e, quando o fiz, consternou-me o bizarro teatro montado: a
razão jurídica do processo perdida na retórica de tudo o que é meu pelo sim, menos deus, que passou a
ser de todos para salvar o país. Dei-me conta de ter a política brasileira se
convertido num problema de intestinos. A indigestão me pareceu imediatamente a mais
natural das reações, contando ainda haver, mais do que petróleo, alguma reserva
de sensibilidade entre nós.
Na Crítica da faculdade de julgar (1790), Kant admite uma
representação artística do feio. Uma única exceção: a feiura que gera asco. O objeto se confundiria com a
sensação de repúdio e o prazer de sentir e pensar livremente a beleza da obra
seria interditado. Ainda que culturas diferentes tenham relações distintas com
o asco e a beleza, talvez pudéssemos nos perguntar o quanto e por que a nossa política hoje é capaz de produzir mal-estar no seu espectador, dentro e
fora do país. Seríamos sempre e somente espectadores do repugnante? Outros
sentimentos, tais como o ódio, não dariam alguma naturalidade ao asco, a ponto mesmo
de transformá-lo em prazer, por uma lógica do horror?
Honoré Daumier, Câmara dos deputados, 1834 (litografia)
Ouçamos
Jair Bolsonaro. Criar polêmica e abrir a boca para exterminar o outro sem entender
sequer do que fala, é sinal hoje de força e caráter. Para muita gente. Isso não
seria tão facilmente possível sem a produção midiática e política de um colapso
que, por sua vez, favorece o aparecimento de redentores da ordem e da
moralidade. E é tal força e caráter que cita de saída Eduardo Cunha, como um nome
que entrará para a história. Resta-nos saber que historiadores honrarão esse
nome. Mas Bolsonaro conseguiu ir mais longe: ele ressaltou a memória de Carlos
Alberto Brilhante Ustra. Um nome que seu filho ao fundo repetiu com o movimento
dos lábios, como se invocasse a sagração de um ídolo messiânico. Bolsonaro com
isso realmente se torna um mito. Um mito de pavor não apenas para Dilma, mas
para toda sociedade brasileira. O coronel Ustra foi chefe do DOI-CODI
(1970-1973) e há registro de mais de 300 torturados sob suas ordens. Lutavam,
aliás, por democracia. O artigo de Carla Jiménez de El país dá uma boa ideia de quem foi o coronel e do que foi capaz durante
a ditadura. Devotá-lo abre um caminho repudiável para nossa cultura, à custa do
que também a história lembra para não ser repetido.
Mas
de onde vem essa necessidade de produzir e recomeçar sempre e novamente a dor no
outro? O sofrimento não escolhido, como uma doença, já não seria um mal
suficiente à condição humana? Que tipo de prazer se oculta neste processo de impeachment? Se confiarmos nos discursos
que prometem mudar o destino do país, não encontraríamos, entre deus e tantos
familiares, o semblante do coronel Ustra? Quem suportaria o lugar do torturado,
ou da torturada, nos tempos do coronel e neste momento histórico?
Jason de Lima e Silva
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