quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Fragmentos de um golpe. II.

Mauro Lopes nomeia as quatro principais famílias do Basta! Fora Dilma! (Sobre as quatro famílias que decidiram derrubar um governo democrático). São elas: os Marinho (Organizações Globo), os Civita (Grupo Abril/Veja), os Frias (grupo Folha) e os Mesquita (Grupo Estado). Mas há outras com “mídias de segunda linha, como os Alzugaray (Editora Três/Isto é) e os Saad (Rede Bandeirantes), ou regionais, como os Sirotsky (RBS, influente no sul do país).” Não à toa, a mesma novela da vida real assola nossas mentes, sobretudo nos últimos quatro ou cinco anos, em todos os canais e redes, segundo uma lógica maniqueísta que reduziu a crítica política ao ódio dos revoltados (um ódio notadamente feito, ou seja, estrategicamente fabricado). Tal lógica se explicita também, e cada vez mais, na operação Lava Jato. O bom mocinho contra o império do satanás. E para ser vencido o mal, a ordem do devido processo legal foi subvertida sob a presunção evidente da culpabilidade: primeiro o acusado vira notícia, em seguida a opinião pública o condena, depois o juiz assina a sentença e, por fim, a polícia o prende. Ou o conduz coercitivamente. Neste caso, a distinção entre os termos não altera a prática autoritária, cuja evidência fica cada vez mais clara para outros países. E é curioso, mas não espantoso para quem estuda um pouquinho de história, ver como algumas coisas voltam, mas voltam, claro, na diferença e na particularidade de seu acontecimento. Voltam as contradições de classe, volta sempre o poder econômico de uma minoria sobre a maioria, mas também volta o fenômeno de uma tirania da maioria, tal como Alexis de Tocqueville escreve a respeito do perigo d’ A democracia americana, de 1835. E a nossa república democrática brasileira, afinal de contas, seria capaz de virar uma tirania? Quem duvida? As oitocentas e quatorze páginas de René Dreiffuss, 1964, A conquista do Estado, revelam não apenas a enorme paciência de um historiador e cientista político para ler e escrever tanto e tão bem, com seus organogramas, documentos e inumeráveis notas de rodapé. Revelam o que permite à teoria compreender, com o esforço que lhe é próprio, o que foi 1964, donde a razão de seu subtítulo: ação política, poder e golpe de classe. A mim, que neste momento o leio, e bem devagar para não perder um pensamento, tenho a impressão de assistir um noticiário crítico do presente, cujo horizonte me assusta. Ele mostra como foi formado o IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) no início dos anos 1960, entre Rio e São Paulo. O que unificava seus militantes, diz o estudioso, “eram suas relações econômicas multinacionais e associadas, o seu posicionamento anticomunista e a sua ambição de readequar e reformular o Estado”. René Dreiffuss fala de um verdadeiro assalto à opinião pública por parte do IPES, em razão de seu relacionamento direto com importantes jornais, rádios e televisões nacionais. Cita os Diários Associados (de Assis Chateaubriand), a Folha de São Paulo (os Frias), o Estado de São Paulo e o Jornal da Tarde (os Mesquita), cita J. Dantas do Diário de notícias, a TV Record e a TV Paulista, o Jornal do Brasil, o Correio do povo do Rio Grande do Sul e ademais cita, vejam que surpresa, O Globo, das Organizações Globo do grupo Roberto Marinho, sem falar na influente Rádio Globo. Mas vamos ler o autor (reparem, por favor, as aspas dentro das aspas!): “Eram também ‘feitas’ em O Globo notícias sem atribuição de fonte ou indicação de pagamento e reproduzidas como informação fatual. Dessas notícias, uma que provocou um grande impacto na opinião pública foi que a União Soviética imporia a instalação de um Gabinete Comunista no Brasil, exercendo todas as formas de pressões internas e externas para aquele fim.” E o capítulo de nosso terror na vida política e social dos anos 1960 estava apenas começando, com a demonização do comunismo e a articulação dos militares contra João Goulart. Quanta verdade não se inventa por aí! E fora da novela de nossa vida real, vemos o espectador indignado contra a corrupção de um único partido, concentrado na vingança absoluta do bem contra o mal, enquanto escorre ao fosso, dia após dia, os seus direitos políticos e sociais.

Jason de Lima e Silva 


Cena do filme O processo de Orson Welles, de 1962,
baseado no livro homônimo de Franz Kafka, de 1925 

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