Blue Jasmine: o real e seu duplo
É possível viver sem ilusões?
Se não, é razoável sustentar as mesmas sempre, durante toda a vida, sob o risco
de certo disparate entre a convicção íntima e os fatos, o deslumbre e a
frustração? Mais uma: quanto do real é possível suportar quando a desilusão se
torna maior do que o prazer de iludir-se e deixar-se iludido? Perguntas sobre
as quais por sorte nenhum filósofo detém o privilégio, afinal, quem já não
pensou que tudo seria melhor se...? Ilusão: o se permanece preso nos labirintos da linguagem, como a condição de
uma possibilidade não mais possível. A vida segue, o real não barganha, e desilusões
não passam muitas vezes de ilusões que não podíamos evitar sobre algo ou alguém
cujo sentido ou destino nunca seguramente nos pertenceu.
Cate Blanchett em Blue Jasmine, W. Allen, 2013, fonte: http://www.sonyclassics.com/bluejasmine/ |
Blue
Jasmine (2013) de Woody Allen conta a desilusão de Jasmine (Cate Blanchett)
sob uma sequência de quedas: perde o marido, o filho, o patrimônio, o dinheiro,
as amigas, quase tudo de uma vez. Mas não perde a pose, nem o impulso de mantê-la
a qualquer custo, quando precisa tudo recomeçar. E para não perder um homem de
boa posição, que casualmente surge e por quem se encanta, mantém-no iludido:
sobre seu passado, seu trabalho, sobre quem realmente é. “Posso ter floreado alguns fatos”, comenta
com sua irmã, “e omitido detalhes desagradáveis, mas os sentimentos, as ideias,
o humor... não é isso o que sou? as pessoas não se reinventam?”. Reinventar-se
aqui é uma tática para livrá-la de tudo o que foi e ainda é, já que nada lhe
restou, senão a ilusão de que tinha coisas e era algo: a mulher de Hal (Alec
Baldwin), o empresário bem sucedido de Manhattan, pai exemplar, homem sedutor,
filantrópico picareta.
Mas como surge essa personagem, Jasmine? Falando sem parar. Fala disparatadamente a uma senhora que sequer conhece, do avião ao aeroporto. Nada de mal nisso: quantas pessoas não monologam diante dos outros sem que precisem de ouvidos? Jasmine vai ao encontro da irmã, Ginger (Sally Hawkins), cujos genes eram piores do que os seus, segundo comentavam seus próprios pais. Quando chega ao endereço indicado em San Francisco, toda a sua elegância destoa do cenário ao redor, como acontece a personagem Blanche em Um bonde chamado desejo, de Tennesse Willians (1947): “Sua expressão é de incredulidade, e ela parece chocada”. Blanche e Jasmine jamais cogitaram o apelo às suas irmãs pobres. Blanche chega de Belle Rêve e Jasmine ouve Blue Moon desde quando conheceu Hal pela primeira vez. E se uma regula o desamparo pelo whisky, a outra prefere a vodca, mais uns remedinhos. Augie, o ex-marido de Ginger, não esconde o incômodo pelo aparecimento dessa irmã, e ele tem suas razões (mais adiante vemos o golpe que toma de Hal, quem subverte a sua sorte). Mas “o que ela entendia de finanças?”, pergunta Ginger, por impulso de zelo fraterno. “Bobagem, não me venha com essa!”, responde Augie: “Fica anos casada com um cara envolvido em fraude imobiliária e bancária, e vem me dizer que ela não sabia de nada. (...) quando ganhava diamante e peles ela olhava para o outro lado”.
Mas como surge essa personagem, Jasmine? Falando sem parar. Fala disparatadamente a uma senhora que sequer conhece, do avião ao aeroporto. Nada de mal nisso: quantas pessoas não monologam diante dos outros sem que precisem de ouvidos? Jasmine vai ao encontro da irmã, Ginger (Sally Hawkins), cujos genes eram piores do que os seus, segundo comentavam seus próprios pais. Quando chega ao endereço indicado em San Francisco, toda a sua elegância destoa do cenário ao redor, como acontece a personagem Blanche em Um bonde chamado desejo, de Tennesse Willians (1947): “Sua expressão é de incredulidade, e ela parece chocada”. Blanche e Jasmine jamais cogitaram o apelo às suas irmãs pobres. Blanche chega de Belle Rêve e Jasmine ouve Blue Moon desde quando conheceu Hal pela primeira vez. E se uma regula o desamparo pelo whisky, a outra prefere a vodca, mais uns remedinhos. Augie, o ex-marido de Ginger, não esconde o incômodo pelo aparecimento dessa irmã, e ele tem suas razões (mais adiante vemos o golpe que toma de Hal, quem subverte a sua sorte). Mas “o que ela entendia de finanças?”, pergunta Ginger, por impulso de zelo fraterno. “Bobagem, não me venha com essa!”, responde Augie: “Fica anos casada com um cara envolvido em fraude imobiliária e bancária, e vem me dizer que ela não sabia de nada. (...) quando ganhava diamante e peles ela olhava para o outro lado”.
Jeanette "Jasmine" (Cate Blanchett), Alec Bawdin (Hal), Andrew Dice Clay (Augie) e Sally Hawkins (Ginger), em Blue Jasmine/ Fonte: http://www.sonyclassics.com/bluejasmine/ |
Técnica da ilusão: olhar para o outro lado. Não que Jasmine não soubesse quem era o
marido ou que sua especialidade fosse os grandes golpes: ela apenas olhava para
o outro lado. Clément Rosset publica em 1976 um ensaio sobre a ilusão: O real e seu duplo. “Na ilusão”, escreve
ele, “quer dizer, na forma mais corrente de afastamento do real, não se observa
uma recusa da percepção propriamente dita. Nela a coisa não é negada: mas apenas
deslocada, colocada em outro lugar”. A percepção é atravessada pelos fantasmas
do próprio desejo, ao passo que a realidade é vista como quem olha de soslaio algo
incapaz de obscurecer a convicção sobre o que somos ou nos acontece. O iludido
olha o que quer ver, e se olha para o outro
lado é para enxergar apenas o que não se sobrepõe ao entusiasmo de sua
fantasia. Pode até reconhecer algum inconveniente, mas não o associa a sua
escolha. Aceita então o fato, mas não seus efeitos. Sabe do que se passa, mas
não consente.
A ação do filme se dá neste
presente: morar com a irmã e seus dois filhos, compartilhar às vezes o espaço
com o amante de Ginger e seus amigos. Mas esse presente é interrompido por
reminiscências, cenas de um passado ainda recente. Os olhos de Jasmine então caem
num lugar desconhecido, sua expressão muda, às vezes fala sozinha ou xinga
alguém que não está na cena. E aos poucos seu drama nos é revelado. Uma de suas
primeiras lembranças é na casa de campo: vemos Jasmine com suas amigas e seus respectivos
maridos ricos, os quais se retiram do jardim com papéis em mãos, quando uma das
mulheres comenta: “Eles vivem se escapando do departamento de Justiça”. Jasmine
depois retruca: “Nunca sei dos negócios de Hal. Não tenho cabeça para esse tipo
de coisa”. E uma amiga fala da expressão ultimamente famosa: chama-se “olhar
para o outro lado” (to look the other way).
Não se trata de não ver
o que se mostra, mas de concentrar apenas no que não lhe afeta o desejo, medido
pela ilusão daquilo por cuja posse não haveria infelicidade. Tanto via e sabia Jasmine
que nada esconde dos filhos de Ginger, num bar. Bem curiosos pela reputação de
loucuras da tia, e assustados ao mesmo tempo, ouvem-na contar como tudo lhe desmoronou
rapidamente, a ansiedade, o medo da morte, os pesadelos, os remédios, o colapso
nervoso: “eu suspeitava que nem tudo o que Hal fazia era cem por cento legítimo:
tinha que ser idiota para não suspeitar que seu sucesso fenomenal era bom demais
pra ser verdade”. Vejam, ela não pôde negá-lo, nem no presente, nem no passado:
talvez até tenha se feito de idiota, e por isso mesmo não pôde encarar o que restou
à sua frente. Entre a vida proveitosamente iludida e o cerco inexorável do real,
a ação se vê paralisada, o passado repete o malogro, o presente está disperso e
o futuro não se abre: o mundo se torna maior do que todos os sonhos juntos e o
impacto da queda é proporcional à ascensão do mito inventado para si mesmo. Pois
a ilusão duplica o que há e o que somos. “No par maléfico que une o eu a um outro
fantasmático”, escreve Rosset, “o real não está do lado do eu, mas sim do lado
do fantasma: não é o outro que me duplica, sou
eu que sou o duplo do outro. Para ele o real, para mim a sombra”. Quem é
Jasmine senão a sombra de uma ilusão que se tornou mais verdadeira que ela
mesma? Senão o duplo de um outro perdido na memória, o fantasma de uma vida bem
aproveitada? Talvez o único ato propriamente seu tenha se realizado na plenitude
da vingança, o que dá justamente unidade a toda narrativa: eis o seu grande
lance antes da bancarrota, quando não mais pôde afetivamente olhar para o outro lado. Mas como suportar as
consequências deste feito sem volta? Entre as ilusões de si e as desilusões do
mundo, Jasmine chega em pedaços ao fim da história. Se ela mudou de nome porque
“Jeanete não tinha brilho”, após a trágica peripécia que a persegue na memória
e outra reviravolta no tempo contínuo de sua ação, Jasmine se torna blue, as ideias se confundem e as
palavras se misturam. “Em cada esquina cai um pouco a tua vida / Em pouco tempo
não serás mais o que és”, não canta Cartola? A ilusão da arte não duplica o
mundo por um além redentor, nem duplica o que somos pela representação de um
destino feliz. A ilusão da arte mostra no outro o que já está senão cindido, no
mínimo é tenso em nós: que caminho percorremos quando há muitos outros lados
possíveis, nenhum necessário e todos sem volta?
Jason de Lima e Silva
Artigo
originalmente publicado na revista Subtrópicos,
23, Florianópolis: Editora da UFSC, 2015:
https://issuu.com/ayrtonsilveira/docs/subtropicos_n23.
Nenhum comentário:
Postar um comentário