domingo, 25 de setembro de 2016

Fragmentos de um golpe. III.

É preciso lembrar a atualidade de Z. Z é um filme franco-argelino, dirigido por Costa Gravas, de 1969. Ele abre com imagens de brasões, medalhas e insígnias militares e cristãs. Ao fundo, a maravilhosa trilha de Míkis Theodorákis, um artista sempre politicamente engajado. A trilha fica mais baixa e ouvimos um discurso sobre a pulverização das vinhas para prevenir o aparecimento de fungos. Vemos uma ampla sala e militares sentados em carteiras, como se fosse uma escola militar ou algo do tipo. A doença das vinhas, diz o palestrante antes de passar a palavra ao general, aparece ao lado de outra doença: é uma doença ideológica que afeta os homens. O orador anuncia o próximo tópico, o tópico do general. Ouvimos os aplausos. A imagem congela e aparece a legenda: Qualquer semelhança com os fatos, ou pessoas vivas ou mortas, não é mera coincidência mas intencional. Uma advertência dos roteiristas. O que aconteceu lá naquele tempo? O que acontecerá na história do filme? O que acontece conosco atualmente? O filme corresponde a fatos reais da Grécia, antes do golpe de Estado (1967), em torno do assassinato do deputado Grigoris Lambrakis em 1963. Só ao fim compreendemos por que o nome Z, e o quão grave é, para a história de um povo, a tomada do poder político ilegitimamente: “não é mera coincidência”. “Tal como o fungo”, diz o general quando está com a palavra, “a doença ideológica deve ser combatida previamente”, e por isso “a pulverização dos homens é indispensável”. Primeiro nas escolas, depois nas universidades. Esse fungo é o que nos afasta de Deus e da Coroa, é um inimigo, diz o general, bastante convicto de suas ideias. “Com o aparecimento dos sistemas de ismos” (socialismo, anarquismo... comunismo), “as sombras se espalham sobre o sol. Deus se recusa a iluminar os vermelhos”. Por fim, ele anuncia a vinda de um inimigo: o político esperado por um grupo de militantes para se posicionar contra a instalação de mísseis americanos no território grego.



Cena do filme Z (Costa Gravas, 1969), com Yves Montand e Irene Papas,
baseado no romance homônimo de Vassillis Vassilikos, de 1963

Qual a lógica dos reacionários? Se queres a guerra, combata a paz. E a primeira medida para se combater a paz é inventar o inimigo, em nome de deus ou da democracia, ou de ambos se for o caso. René Dreifuss (já o citei: 1964, A conquista do estado, de 1981) fala de guerra psicológica através do rádio, da televisão, dos jornais, dos cartuns e dos filmes, a ponto de estimular "uma reação quase histérica das classes médias", segundo a doutrinação da elite orgânica contra “o comunismo, o socialismo... e a corrupção do populismo” e de “uma grosseira propaganda anticomunista”, antes e durante o golpe civil-militar de 1964. Um bom exemplo da grosseira invenção do inimigo aparece numa edição de julho de 1963 de O gorila, publicado pelas Forças Armadas. Depois de apresentarem o que julgavam ser o marxismo, os autores caracterizam o comunista: “Ele é aparentemente inofensivo... nunca se trai, sempre amigo, o mais sincero, o mais leal... até o dia em que ele o assassinará pelas costas, friamente... Eles matam frades, violam freiras, destroem igrejas”. É engraçado, não? Nada tão bizarramente atual. E seria de fato cômico se a ignorância quanto ao significado dos diferentes ismos não gerasse o ódio, o ódio não revertesse na estupidez necessária para a ofensa e a ofensa não fosse a razão suficiente para guerra. Como e por que razão conversar com o pior ignorante, aquele definido por Platão em seus apaixonantes diálogos: o que ignora a própria ignorância, o que nega não saber? E por isso mesmo permanece blindado por suas convictas opiniões. Como se fossem realmente próprias as suas ideias a respeito de si e do mundo.


Jason de Lima e Silva 

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Fragmentos de um golpe. II.

Mauro Lopes nomeia as quatro principais famílias do Basta! Fora Dilma! (Sobre as quatro famílias que decidiram derrubar um governo democrático). São elas: os Marinho (Organizações Globo), os Civita (Grupo Abril/Veja), os Frias (grupo Folha) e os Mesquita (Grupo Estado). Mas há outras com “mídias de segunda linha, como os Alzugaray (Editora Três/Isto é) e os Saad (Rede Bandeirantes), ou regionais, como os Sirotsky (RBS, influente no sul do país).” Não à toa, a mesma novela da vida real assola nossas mentes, sobretudo nos últimos quatro ou cinco anos, em todos os canais e redes, segundo uma lógica maniqueísta que reduziu a crítica política ao ódio dos revoltados (um ódio notadamente feito, ou seja, estrategicamente fabricado). Tal lógica se explicita também, e cada vez mais, na operação Lava Jato. O bom mocinho contra o império do satanás. E para ser vencido o mal, a ordem do devido processo legal foi subvertida sob a presunção evidente da culpabilidade: primeiro o acusado vira notícia, em seguida a opinião pública o condena, depois o juiz assina a sentença e, por fim, a polícia o prende. Ou o conduz coercitivamente. Neste caso, a distinção entre os termos não altera a prática autoritária, cuja evidência fica cada vez mais clara para outros países. E é curioso, mas não espantoso para quem estuda um pouquinho de história, ver como algumas coisas voltam, mas voltam, claro, na diferença e na particularidade de seu acontecimento. Voltam as contradições de classe, volta sempre o poder econômico de uma minoria sobre a maioria, mas também volta o fenômeno de uma tirania da maioria, tal como Alexis de Tocqueville escreve a respeito do perigo d’ A democracia americana, de 1835. E a nossa república democrática brasileira, afinal de contas, seria capaz de virar uma tirania? Quem duvida? As oitocentas e quatorze páginas de René Dreiffuss, 1964, A conquista do Estado, revelam não apenas a enorme paciência de um historiador e cientista político para ler e escrever tanto e tão bem, com seus organogramas, documentos e inumeráveis notas de rodapé. Revelam o que permite à teoria compreender, com o esforço que lhe é próprio, o que foi 1964, donde a razão de seu subtítulo: ação política, poder e golpe de classe. A mim, que neste momento o leio, e bem devagar para não perder um pensamento, tenho a impressão de assistir um noticiário crítico do presente, cujo horizonte me assusta. Ele mostra como foi formado o IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) no início dos anos 1960, entre Rio e São Paulo. O que unificava seus militantes, diz o estudioso, “eram suas relações econômicas multinacionais e associadas, o seu posicionamento anticomunista e a sua ambição de readequar e reformular o Estado”. René Dreiffuss fala de um verdadeiro assalto à opinião pública por parte do IPES, em razão de seu relacionamento direto com importantes jornais, rádios e televisões nacionais. Cita os Diários Associados (de Assis Chateaubriand), a Folha de São Paulo (os Frias), o Estado de São Paulo e o Jornal da Tarde (os Mesquita), cita J. Dantas do Diário de notícias, a TV Record e a TV Paulista, o Jornal do Brasil, o Correio do povo do Rio Grande do Sul e ademais cita, vejam que surpresa, O Globo, das Organizações Globo do grupo Roberto Marinho, sem falar na influente Rádio Globo. Mas vamos ler o autor (reparem, por favor, as aspas dentro das aspas!): “Eram também ‘feitas’ em O Globo notícias sem atribuição de fonte ou indicação de pagamento e reproduzidas como informação fatual. Dessas notícias, uma que provocou um grande impacto na opinião pública foi que a União Soviética imporia a instalação de um Gabinete Comunista no Brasil, exercendo todas as formas de pressões internas e externas para aquele fim.” E o capítulo de nosso terror na vida política e social dos anos 1960 estava apenas começando, com a demonização do comunismo e a articulação dos militares contra João Goulart. Quanta verdade não se inventa por aí! E fora da novela de nossa vida real, vemos o espectador indignado contra a corrupção de um único partido, concentrado na vingança absoluta do bem contra o mal, enquanto escorre ao fosso, dia após dia, os seus direitos políticos e sociais.

Jason de Lima e Silva 


Cena do filme O processo de Orson Welles, de 1962,
baseado no livro homônimo de Franz Kafka, de 1925 

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Fragmentos de um golpe. I.

Quando alguém fala ter havido um golpe político no país, pode parecer, à primeira vista, exagero. Afinal, não vemos tanques nas ruas nem chefes de governo assassinados. Neste ponto, não nos custa ler ou ouvir quem entende para entender as coisas. Carlos Barbé diferencia o golpe de Estado da guerrilha e da guerra revolucionária. Se a guerrilha desgasta até o limite as forças armadas e policiais a serviço do Estado, o golpe “é executado não apenas através de funcionários do Estado (...) mas mobiliza até elementos que fazem parte do aparelho estatal”. Por isso, o Congresso Nacional e os dispositivos constitucionais podem servir de meio e princípio. Mas para o golpe ter êxito, diz Pasquino mais adiante, é preciso “ocupar e controlar os centros de poder tecnológico do Estado, tais como as redes de telecomunicações, o rádio, a TV, as centrais elétricas, os entroncamentos ferroviários e rodoviários”, o que permite “o controle dos órgãos do poder político” (vide o verbete “Golpe de Estado” do Dicionário de política, escrito com N. Bobbio e N. Matteucci, de 1983). Os jornais, as revistas e os noticiários de TV, os mais divulgados e vendidos no país, não cansaram de dizer o mesmo: Fora Dilma! Basta! As manifestações reuniram os honestos contra os corruptos e o pato da FIESP pululou aqui e acolá a farsa de uma revolta contra os impostos: por quais interesses? No jogo de poder das informações e comunicações, quem são mesmo as famílias em razão das quais nos encontramos, mais uma vez, frente a essa destinação política de nossos tristes trópicos? E aqui vale a leitura de Mauro Lopes, dos Jornalistas livres, sobre As quatro famílias que decidiram derrubar um governo democrático:

(http://www.cartacapital.com.br/politica/reflexoes-a-quente-sobre-o-golpe)

Tudo para salvar o país contra o bem geral. 

Jason de Lima e Silva

F. de Goya y Lucientes, Contra o bem geral, Desastres de guerra, c. 1810-1815