sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Ódio, amor e fascismo

O ano não acabou e ainda se tem muito ódio a destilar. É preferível claro sempre viver e falar de amor, ainda que se tenha gastado a palavra como se gasta a lima ao bater à guisa de martelo. Vale amor para tudo, até para os crentes que odeiam a pluralidade de crenças ou a razoabilidade do ateísmo. Assim como vale a palavra paz para todos, até como promessa de quem lucra com a guerra. O ódio corresponde a um sentimento de aversão ou de repúdio por algo. Mas poderia haver um ódio justo ou injusto? Um ódio por exemplo à arrogância escarnecedora do ignorante? Um ódio à suposição de superioridade moral em razão de sua classe econômica ou linhagem familiar? O mais louvável, claro, é não odiar, já que esse tipo de sentimento diminui a potência a cada vez que o estômago se embrulha de asco, a exemplo de quando o barulho da propaganda televisiva torna odiável a televisão. É um afeto, sem dúvida, frequente e politicamente produzido, a exemplo de quando o tom melindroso de uma notícia em uma frase de reprovação tem por finalidade aprisionar seu espectador ao ódio que lhe interessa, para justamente neutralizar sua faculdade de pensamento. 

Cena do filme 1984, dirigido por Michael Radford, 1984, baseado no romance homônimo escrito por George Orwell, 1949

Mas não é difícil ser enganado, pelo ódio e pelo amor, e não é por isso que se desiste de amar, nem se está totalmente livre de odiar. O amor pode até mesmo servir de estratégia coletiva de luta, ou ponte para a transformação de si mesmo, quando seu sentido ultrapassa a romântica expectativa de ser amado na proporção ilusória de quem ama, para se converter na abertura pela qual o mundo se torna admirável, e a vida ganha algum sentido, por existirem pessoas que dizem muito pelo que simplesmente são e são muito pelo que significativamente deixam, estejam vivas ou mortas, entre a infinidade do céu e a escassez da terra. Em contrapartida, para dobrar essa sinistra vontade do ódio que leva alguém a deplorar o que lhe ameaça ou consigo não se identifica, não seria possível retirar desse afeto o princípio ético de suspeita contra tudo o que em nós aparece como desprezível, pequeno demais, tão sem graça perto daquilo que transparece placidez e profundidade, como a alma do oceano? Um verdadeiro amor-próprio pressupõe um desprezo ascético de si mesmo, uma libertação permanente de seu eu, de sua identidade, de seu louvor, como arte de trocar seus méritos pelo conhecimento da história, seus presumíveis talentos pelo estudo das artes, seu orgulho pela superioridade da natureza. E o fascismo inversamente começa quando se mitifica o vazio da brutalidade e se passa a buscar os culpados para as razões de seu ódio, unidade de todos os cansaços e megalomanias, ânimo incansável para destruir o que desconhece, incapaz de se metamorfosear como sentimento para amar o que lhe ultrapassa.

Jason de Lima e Silva

sábado, 11 de novembro de 2017

Barbárie e massificação

"(...) Comecemos pela palavra: barbárie. Os gregos identificavam os bárbaros como incapazes de pólis, ou seja, incapazes de deliberar e agir em razão de uma destinação comum, em razão de uma comunidade. Barbárie significa o reino das paixões sem lei: institui a tirania, de um lado, a escravidão, de outro, como aparece no Banquete de Platão.  Há um fragmento, em todo caso, que é preciso recordar em Heráclito: um filósofo que viveu entre o sexto e o quinto século antes de Cristo. Esse fragmento é um dos muitos tesouros que a tradição nos legou. Diz ele assim: “Más testemunhas para os homens são olhos e ouvidos, se almas bárbaras (barbárous psychas) eles têm” (HERÁCLITO, 1989, fr.107). O que nos diz esse fragmento? Para aqueles que tem a alma bárbara, de nada adiantam seus sentidos, já que não dão sentidos ao mundo do que sentem. Pela primeira vez na história do pensamento, a barbárie não está situada na exterioridade de uma língua ou povo, mas na interioridade do homem, na sua alma. (MATTÉI, 2002, p.93). O que faz com que a alma seja submetida à barbárie? O fato, especialmente, de não se ver livre de seus afetos particulares para o que se mostra, e de não conseguir ouvir além do que já compreende, e por isso mesmo, se recusa a compreender. No seu segundo fragmento, Heráclito diz que a maioria dos homens vive uma inteligência particular. Essa prisão da alma em si mesma, sem abertura para o outro que é o próprio mundo, impede a alma de perceber as coisas tais como são. E um dos trabalhos da dialética de Platão no sétimo livro da República será o de erguer os olhos da alma para além de seu lodo bárbaro através das artes, tais como a ginástica e a música.  A alma, enquanto escrava de sua barbárie, não tem forças, nem direção e nem concentração suficientes para escalar a sabedoria rumo ao bem de todas as coisas, o bem que nos faz pensar. E Jean-François Mattéi diagnostica quatro traços de ressentimento, a partir dos quais se reconhece a atitude daquele que seria um bárbaro: 1. O desconhecimento da beleza de uma obra, a ignorância. 2. A denegação do que é elevado, a pretensão. 3. A incapacidade de criação, a impotência. 4. A vontade de destruição, a regressão (MATTÉI, 2002, p.21). Ignorância em relação à beleza, pretensão sobre o que é elevado, impotência para criar, regressão no destruir. Claro, toda a barbárie se institui no reverso e na dinâmica de uma civilização. Em outras palavras, barbárie e civilização não são senão signos que habitam e configuram a mesma humanidade. Como se um pêndulo na terra variasse seu compasso entre a medida da excelência e a pretensão da estupidez, a potência de criar e a obstinação de destruir ou nada significar. Quando Ortega y Gasset fala em direito à vulgaridade, ele fala, em outros termos, no direito de ser bárbaro (o que parece um contrassenso). O direito de opinar sem dar razões, o direito de falar sem saber quem atinge ou o que atinge. A contradição quase genética da democracia é permitir um discurso ou ação contra seu próprio princípio, ou seja, contra a liberdade. E sua morte começa quando está autorizado a qualquer um dizer o que julga pensar sem levar em conta suas razões, sem pensar, justamente, que aquilo que se diz a outros e se faz com outros não tem efeito se não se considerar a diferença. Mais do que a multidão, como Benjamin diz a propósito do conto de Allan Poe, a massa é que tem algo de bárbaro: na ação e palavra de cada indivíduo. Se o homem frustrado e isolado era a condição para o totalitarismo em Hannah Arendt, o homem-massa democrático também o é, sobretudo quando julga falar por uma maioria e age contra o que justamente garante a democracia. E vejam, não é difícil se instituir uma tirania em um terreno democrático, tal como previu Tocqueville em 1835, quando fala em tirania da maioria.  basta a ingenuidade de pensar não apenas que a maioria realmente pensa, mas de que pensa bem e do melhor modo. Se para Ortega y Gasset o homem-massa é o senhor satisfeito e vaidoso, para Tocqueville, a maioria tem adoração por si mesma. Adoração o bastante, poderíamos dizer, para não reconhecer as virtudes sociais das minorias ou, ao contrário, para encontrar facilmente o culpado de todos os seus males reais ou fictícios. Quando o discurso da maioria se volta contra o outro por ser o outro (outra forma de vida e de pensamento), infindável e imprevisível na sua diferença, quando o discurso da maioria se põe contra toda a pluralidade que faz o mundo ser um mundo comum, de seres iguais na sua própria diferença, neste momento apenas um único ego se projeta sobre o corpo individual e social: o ego patriótico, moralista, religioso, salvador da ordem ou do cidadão de bem, pouco importa qual seja (...)."

Trecho do capítulo A barbárie da cultura: massificação e imortalidade, por Jason de Lima e Silva, do livro Dos modernos aos contemporâneos: contribuições, organizado por Ernesto Giusti e Evandro Brito (Apolo Virtual Edições, 2017).



sábado, 14 de outubro de 2017

Big Brother às avessas

Luís Felipe Bellintani Ribeiro
(professor de filosofia da UFF)

A ideia desse texto é velha, mas só hoje pus mãos à obra. Não queria aborrecer a paciência alheia com uma obsessão que já me carcomera as reservas derradeiras de bom humor. E olha que bom humor é artigo precioso para um “existencialista trágico”, digamos, igualmente antirrealista e anti-idealista (sem substância real e sem sujeito transcendental, resta-nos o humor, oxalá, bom).
A obsessão chama-se “Rede Globo”, que só não é aqui uma metonímia stricto sensu por não se tratar exatamente de tomar a parte pelo todo, mas o quase-todo pelo todo.
As razões para voltar à obsessão, em detrimento da paciência alheia, são duas. De ordens bem diferentes, mas ambas funestas em suas fatídicas magnitudes.
A primeira, a morte de um blogueiro “sujo” (sujo = de esquerda, visto da perspectiva do pessoal da “massa cheirosa”), autor de textos de fina perspicácia, cuja leitura me era dos poucos lazeres restantes nestes tempos de truculenta ignorância. Soube hoje pela manhã que morrera ontem [29/06/2017] Paulo Nogueira, do Diário do Centro do Mundo, blog que recomendo aos viciados em informação política que queiram se desintoxicar da desinformação televisiva.
À família Nogueira meus sentimentos, como expressão de imensurável gratidão pelos textos do Paulo. Na tentativa de reduzir a dívida que permanecerá sempre impagável, a promessa de, até que o câncer venha trazer também a mim a cessação de todas as aflições, lutar pelo sonho de um “Brasil escandinavo”, como o Paulo gostava de dizer, e contra o pesadelo de um Brasil escravocrata e colonial, do qual forças poderosas, dentre as quais a Globo, insistem em não nos deixar despertar.
A segunda razão para voltar à obsessão foi a leitura da uma matéria em outro blog sujo, O Cafezinho, de Miguel do Rosário, que falava de uma pesquisa sobre credibilidade da mídia de vários países pelas respectivas sociedades. Pasmem: a pior mídia do mundo (ocidental “democrático”, pelo menos), a brasileira, aquinhoou de sua respectiva sociedade, uma das mais desiguais do mundo, a medalha de prata, superada apenas pela mídia da escandinava Finlândia, que, diga-se de passagem, já é medalha de ouro em vários outros quesitos: uma das sociedades menos desiguais do mundo tem, não por mera coincidência, a melhor educação do mundo, pública, aliás, como boa parte de sua mídia. E tudo isso sustentado por regime tributário progressivo, ao contrário do brasileiro, em que uma minoria de ricaços – e os mais ricaços dos ricaços são exatamente os irmãos Marinho, da Globo – paga relativamente pouco imposto, e ainda tem o desplante de apoiar reformas, como a trabalhista e a previdenciária, que vão arrancar ainda mais o couro dos mais pobres.
Conclusão: ou a mídia de um país é boa, e por isso goza de credibilidade, ou a mídia de um país é muito ruim – não apenas ruim ou pouco ruim – e, por isso mesmo, forma um público tão estupidificado, capaz de bovinamente nela acreditar.
Na França, em que a mídia é mais ou menos (perto da do Brasil, é uma maravilha), a credibilidade na mídia é baixa.
Mas deixemos as razões para voltar à velha ideia e voltemos à velha ideia.
Ela tem a ver com uma imagem, já clássica, criada por George Orwell numa dessas ficções que fantasiam um futuro sombrio a partir das assombrações de um presente qualquer, estilo ficção científica. Trata-se da imagem do “Grande Irmão”, no romance publicado em 1949, cujo título é o ano em que esse futuro é projetado: 1984.

Cena do filme 1984, dirigido por Michael Radford, 1984, com John Hurt

Aliás, “Big Brother” é uma expressão que uma ampla maioria de brasileiros deve conhecer, embora apenas uma minoria talvez se lembre em que deputado votou na última eleição.
“Big Brother” no Brasil soa a coisa legalzinha, divertida – uhu! –, pois o assombroso do romance de Orwell virou exatamente o “sair da sombra” e ficar famoso num reality show da... Globo. A aversão à ideia terrível de que tem sempre um olho te regulando – não adianta fugir para trás de nenhuma moita – transmutou-se no contrário, no desejo de sempre ser visto por um olho qualquer: a distopia virou utopia. Haja câmera e holofote.
Pois é. No romance a imagem eminentemente negativa é associada a regimes totalitários, à falta de liberdade e privacidade individual, aquele velho espantalho do comunismo (ou socialismo, como no romance), regime que dizem por aí ter fracassado.
(Como se o capitalismo tivesse dado certo...)
Mas os tempos mudam, e do homem, esse bicho que não tem essência pré-determinada como o ornitorrinco tem, se espera qualquer coisa.
Estamos na aldeia global capitalista em 2017 e o futuroso ano de 1984 é um passado jurássico. E a aversão própria do espírito liberal à invasão de privacidade converte-se numa afecção de rebanho, fundada na evasão voluntária da privacidade. Viver não é preciso, mas bater selfie da própria vida para exibi-la no Face é preciso.
O fato é que o reality show Big Brother bombou em várias partes do mundo, para a graça de meia dúzia de espertalhões que patentearam o formato da ideia e a exportaram, mas parece que no Brasil ela adquiriu uma longevidade ímpar, pois devemos ser especialmente dóceis para consumirmos sem mensura tamanha mediocridade.
Mas não é por aí que eu queria traçar a relação entre a distopia de Orwell e a Rede Globo. Não é o programa Big Brother o que está em causa, mas o construto imagético orwelliano enquanto tal. Seu princípio é a otimização da função controladora pela hipertrofia da unidade do olho que vê. Um único vidente pode ver qualquer um a qualquer hora. Todos sabem que o Grande Irmão não está vendo o tempo todo – ele também deve dormir e se distrair – mas ninguém sabe quando ele está vendo, então ele pode estar vendo a qualquer hora.
Impossível não pensar no debate que os sofistas travavam nos séculos V e IV a. C., na diferença que Antifonte estabelecia entre estar sob o olhar de testemunhas e estar a ele encoberto, na imagem de Platão do anel de Giges, um salvo conduto que garantia um encobrimento absoluto, e no que dizia Crítias, de ser a noção de um deus onisciente uma criação dos poderosos que criam as leis em seu benefício, para que os súditos as obedecessem mesmo quando encobertos ao aparelho de controle do Estado, o contrário do encobrimento absoluto de Giges, um descobrimento (a-létheia = verdade) absoluto.


Harou Romain, Projet de peniténcier, 1840
Fonte:http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6262634t/f5.image 

Mas talvez exista uma engenharia ainda mais eficaz, em se tratando de um projeto de vigilância ininterrupta. Não há olho individual que suporte essa função de panóptico absoluto. Mais simples é hipertrofiar a unidade do objeto que é visto e delegar aos vigiados a pachorrenta tarefa da vigilância. Em rodízio, por turnos, por faixas, mas ininterrupta e coletiva vigilância. Ao invés de o Grande Irmão olhando todo mundo, todo mundo olhando a televisão.
Imaginemos uma prisão como a imaginada por Bentham, em que todos os presos estão sentados, voltados para o centro, para a guarita de vidro fumê do Vigilante, mas que agora encontra-se toda recoberta de grandes telões, desses que tem nos estádios de futebol. Oito ao todo, oito gigantes telões, norte, sul, leste, oeste, nordeste, sudeste, noroeste, sudoeste. Imagem de alta definição. Áudio de última geração. Muita cor, muito som, entretenimento, propaganda, “informação”, estes três últimos bem misturados até a total indistinção, 24 horas. Os prisioneiros não querem outra coisa, senão conseguir permissão para uma poltrona mais confortável.
O Grande Irmão deixou a fita rolando – eles que fiquem olhando – e saiu para curtir a vida naquela metade do planeta reservada ao 1% mais rico da população. Só com muito entretenimento aturam-se, cordiais, os 99% restantes que se acotovelam no outro hemisfério.

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

terça-feira, 26 de setembro de 2017

Do poema ao bruxo: a alquimia do professor

Jason de Lima e Silva

Preâmbulo para a abertura do Seminário PIBID (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência), que ocorreu no último sábado. Nesse programa coordeno, junto com o professor Cleber Duarte Coelho, o subprojeto Filosofia. A escola avalia o PIBID era o tema do encontro.

Fui convidado pelos organizadores do evento, a professora Adriana Mohr e o professor Hamilton Godoy, a apresentar algo breve como parte de sua abertura. Algo significativo, provavelmente para fazer jus à palavra seminário, que vem de seminarium e semen do latim, e que significa sucessivamente viveiro e semente, mas também escola e fonte. A ideia é ler um poema de Carlos Drummond de Andrade. Um poema que ele escreve a Machado de Assis, nem é preciso dizer, escritor de primeira grandeza na constelação da nossa literatura: negro, filho de pais escravos alforriados, nascido em 1839 na capital do Império brasileiro, Rio de Janeiro. O poema se chama A um bruxo, com amor. Ele foi escrito em 1959, poucos anos antes de nosso penúltimo golpe de Estado. Machado não é nomeado no poema, mas a Rua Cosme Velho onde viveu e todas as suas personagens, boa parte personagens femininas, reaparecem como fantasmas vivos na memória daquele que o homenageia, o próprio poeta. A ideia é comparar a figura do professor à figura do bruxo ou do alquimista, que dentro de seu seminário, dentro de sua escola, lança as sementes depois de colhê-la do mundo lido e observado, vivido e estudado. A forma de apanhá-las para o florescimento das potencialidades, ou para a transformação de seu ser, dependerá em parte da curiosidade de quem aprende, em parte da generosidade de quem ensina (sem falar das condições oferecidas pela escola, segundo uma política voltada para a excelência da educação pública e democrática). Vamos ver se vale a analogia. Se valer, serve o poema também de homenagem ao professor ou professora, que como alquimista recolhe e lança as sementes do mundo para cada qual resolver o seu próprio enigma, entre os livros e a vontade de amar, como diz o poema. Não é um bruxo do vaticínio ou da adivinhação, mas o sinal para uma destinação possível, quando o afeto de quem aprende se encontra com o valor de quem ensina, pela vontade de compreender o mundo físico ou histórico, linguístico ou social, matemático ou político. Fonte do diálogo entre a dúvida e o saber, o professor espalha no viveiro as sementes reunidas e depois desaparece da vista, dissolve-se, quer lembremos de seu nome, quer esqueçamos definitivamente de sua fisionomia ou de sua voz. Vamos ao poema.

René Magritte, O mestre-escola, 1954

A um Bruxo, Com Amor

Carlos Drummond de Andrade,
do livro A vida passada a limpo,1959

Em certa casa da Rua Cosme Velho (que se abre no vazio)
venho visitar-te; e me recebes
na sala trajestada com simplicidade
onde pensamentos idos e vividos
perdem o amarelo
de novo interrogando o céu e a noite.

Outros leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro.
Daí esse cansaço nos gestos e, filtrada,
uma luz que não vem de parte alguma
pois todos os castiçais
estão apagados.

Contas a meia voz
maneiras de amar e de compor os ministérios
e deitá-los abaixo, entre malinas
e bruxelas.
Conheces a fundo
a geologia moral dos Lobo Neves
e essa espécie de olhos derramados
que não foram feitos para ciumentos.

E ficas mirando o ratinho meio cadáver
com a polida, minuciosa curiosidade
de quem saboreia por tabela
o prazer de Fortunato, vivisseccionista amador.
Olhas para a guerra, o murro, a facada
como para uma simples quebra da monotonia universal
e tens no rosto antigo
uma expressão a que não acho nome certo
(das sensações do mundo a mais sutil):
volúpia do aborrecimento?
ou, grande lascivo, do nada?

O vento que rola do Silvestre leva o diálogo,
e o mesmo som do relógio, lento, igual e seco,
tal um pigarro que parece vir do tempo da Stoltz e do gabinete Paraná,
mostra que os homens morreram.
A terra está nua deles.
Contudo, em longe recanto,
a ramagem começa a sussurar alguma coisa
que não se estende logo
e parece a canção das manhãs novas.
Bem a distingo, ronda clara:
É Flora,
com olhos dotados de um mover particular
ente mavioso e pensativo;
Marcela, a rir com expressão cândida (e outra coisa);
Virgília,
cujos olhos dão a sensação singular de luz úmida;
Mariana, que os tem redondos e namorados;
e Sancha, de olhos intimativos;
e os grandes, de Capitu, abertos como a vaga do mar lá fora,
o mar que fala a mesma linguagem
obscura e nova de D. Severina
e das chinelinhas de alcova de Conceição.
A todas decifrastes íris e braços
e delas disseste a razão última e refolhada
moça, flor mulher flor
canção de mulher nova...
E ao pé dessa música dissimulas (ou insinuas, quem sabe)
o turvo grunhir dos porcos, troça concentrada e filosófica
entre loucos que riem de ser loucos
e os que vão à Rua da Misericórdia e não a encontram.
O eflúvio da manhã,
quem o pede ao crepúsculo da tarde?
Uma presença, o clarineta,
vai pé ante pé procurar o remédio,
mas haverá remédio para existir
senão existir?
E, para os dias mais ásperos, além
da cocaína moral dos bons livros?
Que crime cometemos além de viver
e porventura o de amar
não se sabe a quem, mas amar?

Todos os cemitérios se parecem,
e não pousas em nenhum deles, mas onde a dúvida
apalpa o mármore da verdade, a descobrir
a fenda necessária;
onde o diabo joga dama com o destino,
estás sempre aí, bruxo alusivo e zombeteiro,
que resolves em mim tantos enigmas.

Um som remoto e brando
rompe em meio a embriões e ruínas,
eternas exéquias e aleluias eternas,
e chega ao despistamento de teu pencenê.
O estribeiro Oblivion
bate à porta e chama ao espetáculo
promovido para divertir o planeta Saturno.
Dás volta à chave,
envolves-te na capa,
e qual novo Ariel, sem mais resposta,
sais pela janela, dissolves-te no ar.

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

Sede de Educação

Professor Sandro Livramento

“— Estamos vendo as medidas que podemos tomar. Mas depende muito do que a professora quer fazer. A gente não consegue entender de onde saiu essa ideia.” (frase do secretário de educação de Jaraguá do Sul, Rogério Jung para reportagem do clicrbs, 7 de setembro)

Existem muitas possibilidade no caminho da educação. Certamente nenhuma delas é melhor do que a outra ou está em posição privilegiada. Mas em todos os casos, sem exceções, esses caminhos devem levar a uma sociedade mais equilibrada e justa. Caso não seja essa a finalidade, então não é educação.

Um grupo de meninas de 11 anos deu água da privada para sua professora. Não bastando esse horror, a água foi “batizada” com comprimidos. Surpresa?! Infelizmente não.

O espaço da escola pública virou (sempre foi) um lugar de conflito. O que era um conflito entre a classe trabalhadora e as classes dominantes, representadas por seus governos, responsáveis por suas muitas ingerências, por seus descasos e por falta de caminho consolidado para proporcionar uma educação crítica, virou um conflito entre todos. Evidente que tais ingerências também são um projeto de educação, como afirmou Darcy Ribeiro: "A crise da educação no Brasil não é uma crise, é um projeto."

Dito e dado este fato, o conflito agora atinge seu ápice com marcados confrontos entre os muros das escolas das salas de aulas. São socos, xingamentos, ameaças e todo tipos de agressão. Tudo devidamente autorizado pelo estado-maior das secretarias e dos seus gestores. Sim, coloquem na conta deles o sucesso do seu incrível projeto de educação. Trabalhadores da educação e os filhos dos trabalhadores são vítimas desse projeto. Agora, sem um caminho seguro, eles se digladiam pela miséria de um espaço sem sentido e sem vida.

Os profundos descasos representados pela falta de estrutura, por baixos salários, pela precarização, pelo sucateamento e pela falta de um projeto da classe trabalhadora e para a classe trabalhadora, faz mais uma vez o seu papel. Joga aos jornais os cadáveres necessários para vender a ideia de que é preciso intervir. Assim, pipocam casos e mais casos e os especialistas de plantão dão suas sentenças: faliu, ruiu, desmoronou! Claro que depois vêm as soluções mágicas e prontas. A escola sem partido é uma delas. A militarização é outra. A busca por gestões mágicas e terceirizadas, como a parceira de institutos privados e do sistema patronal são as em voga no momento. Assim, em silêncio, e com o clamor do momento, avança o famigerado apontamento feito pelo mestre Darcy.

Não percebemos que a educação, que a vereda da educação é um espaço do pensar calmo e do fazer cotidiano. Somente podemos reagir com sabedoria se pudermos pensar com a calma necessária para saber o que nesse espaço pode ser transformado.

É certo que essa necessidade passará por um apontamento importante: o espaço da educação do filho do trabalhador e feito por um trabalhador. Não podemos entregar de bom grado sua concepção para pseudos gestores e pseudos intelectuais. Não podemos permitir ser guiados pela crise. Precisamos resgatar o sentido desse existir, desse fazer e dessa possibilidade de criar caminhos para a mais importante intervenção do homem pela sua humanidade. A educação não pode ser um espaço pobre, feito por um trabalhador pobre e para trabalhadores empobrecidos.

Que esse espaço seja o espaço da sede do conhecimento, pela sede de sabedoria e pela busca da nossa humanidade. Afinal, como cantou o poeta:

“Traga-me um copo d'água, tenho sede.  
E essa sede pode me matar.
Minha garganta pede um pouco d'água.
E os meus olhos pedem teu olhar.
A planta pede chuva quando quer brotar.
O céu logo escurece quando vai chover.
Meu coração só pede teu amor.
Se não me deres, posso até morrer.

Gilberto Gil, "Tenho sede", do álbum Refazenda, 1975

Gilberto Gil, Acústico para MTV, 1994



quinta-feira, 7 de setembro de 2017

A era dos espelhos

Filósofo: Diga-me então como viver aqui, se qualquer dúvida já lhes parece um crime? Conversar se tornou uma recreação clandestina.
Escritor: Já não é época para os ouvidos, e quando ouvem, não compreendem. Em contrapartida, as línguas andam afiadas, cheias de tiques para delatar o primeiro que escolhem para acusado, desde que lhes garantam os prêmios. Se faltar a língua, aponta-se o dedo, e ganha-se a liberdade.
Filósofo: Sim, por isso pergunto: como é possível viver neste lugar? 
Escritor: Já não é um lugar, não há mais lugar. Está tudo fechado. Melhor, está tudo aberto. Veja quantos buracos por todos os lados, nas paredes, no chão, nos olhos das pessoas, buracos de medo e de ódio. Arrancam de nossa terra tudo o que temos, luz e floresta, sangue e petróleo, e mais  buracos.
Filósofo: Sim, e o sangue é do povo. Com a ração do governo, o povo não pensa, mas ainda sangra, e aceita de boa vontade sofrer. 
Escritor: Muita gente do povo se julgou rica nos anos dourados, repudiou o governo por dar muita coisa aos pobres, maldisse a justiça por favorecer o trabalhador. O pobre esqueceu de que foi pobre, virou empresário. Agora paga juros ao banco e sua pastelaria não tem clientes, mas continua ligada a TV, e no mesmo canal.
Filósofo: E como vive aquela classe lá adiante nos arranha-céus! Veja só. Andam assustados com a própria sombra, enfurnados nos seus caixotes iluminados, a beira de um colapso, tomados pela insônia na madrugada. Não há que fazer! Por onde afinal recomeçaríamos?

Giorgio de Chirico, O grande jogo (Plaza de Itália), 1971

Escritor: A humanidade? Pelo fim. Só não sabemos o quanto ainda será necessário destruir para termos gente ao nosso lado... e recomeçarmos.
Filósofo: Os bem-sucedidos, os sábios charlatões, os juízes monomaníacos, todos eles abriram muitos buracos nesta Colônia, já maltratada há séculos. Agora nos calam.
Escritor: Talvez em breve nos matem.
Filósofo: Não, que dizes! E restaria algo?
Escritor: E o que resta agora? diga-me. Somente essa grande cidade de espelhos cercada de prédios blindados de vidro, aí estão os sócios, os seguidores discretos e exaltados, os bajuladores de toda a ordem, os empresários falidos também, os pastores propondo suas leis nas assembleias, empreendedores da fé, como babam, meu senhor! os rentistas sempre, sugando a fonte infindável das dívidas! Viste os revoltados da pátria? pedem agora colo para suas mães. Que pátria existe depois da festa sobre nossos minérios e do charco aberto pelos transgênicos? 
Filósofo: Lembre-se, temos de andar pelas margens para os espelhos não nos alcançarem, os atalhos sempre! Se capturam nosso reflexo, somos facilmente confundidos.
Escritor: Eles próprios já não suportam a proliferação de suas imagens. Por isso desejam a guerra, a guerra ou morrem do tédio consigo na frente de seus pares. A guerra pelos espelhos é a primeira de todas. Olhe quantas de suas miragens se projetam nas telas dos edifícios: a lenda, o fabuloso, o herói!
Filósofo: O guerreiro imortal! Boceje à vontade, aqui está o banco, vamos nos sentar e comer. Essa praça ainda é o nosso refúgio e hoje temos um pouco de luz sobre os plátanos e sobre as folhas que cobrem o caminho.
Escritor: Um gole de café, meu amigo, vamos falar baixo e nos sentir livres.
Filósofo: O ar selvagem de um parque abandonado assusta até a polícia, e nos protege.
Escritor: Sim, sim, mas por que afinal seríamos perigosos?

Jason de Lima e Silva

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Educação e soco na cara

Por Sandro Livramento, professor


“Se eu tiver que ser voz do magistério brasileiro, que está muito abandonado, eu vou ser. Inclusive a mídia está nos abandonando, a sociedade, o governo, as famílias. Todos têm culpa. Todos ajudaram a deixar meu olho roxo” (profª. Márcia Friggi ao Notícias do Dia, de 21 de agosto).
O que as “reformas” atuais, como a reforma do ensino médio, a reforma trabalhista, tem a ver com a agressão contra a professora Márcia Friggi?
Resposta: Tudo!
A professora Márcia Friggi não é a única e nem será a última (infelizmente) a ser agredida por um aluno descontrolado e desamparado.
As marcas da agressão, um olho roxo e um corte profundo no supercílio são certamente doloridas e nos deixam tristes e perplexos. Solidariedade, professora! Nosso total apoio e acolhida a sua dor e a sua luta. Ela é nossa também.
Mas é preciso voltar lá atrás e entender que esse soco foi dado muito antes. Também é preciso entender que a mão do garoto que proferiu tal soco é conduzida a fazer tal ato. Como assim?
Ora não sejamos ingênuos. O atual estado da educação brasileira é um projeto das classes dominantes e da elite política. Ao sermos abandonados e cotidianamente desrespeitados pelos governantes, pelos políticos e pela justiça, somos expostos a todo e qualquer tipo de violência. Assim, o soco na cara de uma indefesa professora, mulher, é na verdade a tradução desse desrespeito simbolizado por baixos salários (uns dos motivos pelos quais, provavelmente, a professora dava aula no EJA como ACT (Admitido em Caráter Temporário), jornadas desumanas, falta de estrutura nas escolas, falta de apoio pedagógico, falta de condições mínimas de fazer o mínimo trabalho pedagógico com uma mínima qualidade. 
O soco vem sendo dado há muitos anos. Por todas as esferas da sociedade, inclusive muitos setores da esquerda que abandonaram esse espaço de luta. Por todos os agentes políticos, inclusive sindicatos que esqueceram as bases e apontaram seus projetos para outros horizontes.
Para quem torce o nariz para essas pequenas verdades, um conselho: você também sustenta essa violência contra os trabalhadores da educação quando paga para não se incomodar, quando escolhe calar na esfera privada os descasos acumulados por péssimos salários pagos aos professores dos seus filhos (sim, péssimos!).


Rodríguez Castelao, A derradeira lección do Mestre, 1945
Coleccion Centro Galícia, Buenos Aires
Fonte: http://www.ciudadpintura.com


Na outra ponta, o adolescente. Sem limite, sem noção nenhuma de espaço ou esfera pública, vítima da injustiça cotidiana dos estados e das elites. Filho de uma estrutura familiar sufocada por jornadas de trabalhos insanas, em razão das quais os pais não podem acompanhar seus filhos nas escolas ou em reuniões pedagógicas. Mães e pais que são obrigados a fazer dupla ou tripla jornada para sustentar suas famílias. As escolas acabam virando depósito de gente, de indivíduos, de coisas. Imagine você as condições de um pai ou uma mãe, depois de mais de 8 horas de trabalho (talvez mais!), chegar em casa e fazer a lição, conversar com seu filho ou ir à escola dele?
Mas tudo isso vai ficar muito pior. As reformas do ensino médio, trabalhistas, as leis insanas (como a lei da mordaça e das terceirizações), vão empurrar cada vez mais esses sujeitos (professores e alunos) para o gueto da sociedade. Olhos roxos e supercílios abertos já são rotinas, se tornaram conteúdo. Tais “reformas” são vetores de mais violência, de mais confronto. Vão esvaziar qualquer possibilidade de educação de dialogo e transformar esses sujeitos em personagem de um teatro de horror. Logo não serão socos, será a morte!
Tudo isso alimentado por governos e pela elite que abandonaram um projeto de sociedade justa. Que apostaram na mercantilização da educação. Que apostaram em leis inócuas como a lei do piso, que garante tudo e nos dá nada. Que obriga centenas de milhares (maior categoria do serviço público) a precarização de sua profissão. Que aposta em uma escola vazia de sentido e voltada para o lado pragmático do deus do mercado.
Vale lembrar um episódio vivido por um grupo de professores de uma escola estadual no sul da ilha: um procurador do estado ao ser confortado por denúncia das péssimas condições de trabalho e estudo vividas ali naquele local (ele estava na escola), disse com todas as letras: “Vocês podem dar aula até debaixo de árvores, o problema não é nosso!” Se o ministério público estadual tem esse cara como responsável pela fiscalização das ações do estado na educação pública, por que estranhar esse soco?
O soco em Márcia e a atitude do adolescente é a síntese do que é o projeto de educação das elites e dos seus representantes (governos): um sucesso! Sim, sucesso. Porque o nosso fracasso é o sucesso deles. Cada menino e menina que eles colocam para rua da escola ou atrasam sua formação é mais um trabalhador precarizado e pronto para ser explorado por qualquer mísero centavo. Ou vai alimentar as estatísticas de violência e justificar as ações do estado policial que só engorda mais e mais as empresas. Ou será cooptado por grupos fundamentalistas evangélicos que farão sua cabecinha: dizer não ao estado laico, as liberdades religiosas, a questão de gênero, etc.
Sucesso porque este projeto impossibilita a luta de classe. Joga professores contra alunos e suas famílias, sociedade contra professores e contra essas famílias. Massacra trabalhadores fazendo trabalhar até a morte. Em tripla jornada, sem descanso, sem folga e com todo tipo de ameaça no horizonte.
Sim as “reformas”, as leis da mordaça e terceirização têm muito a ver com o soco recebido pela professora Márcia. Tem tudo a ver com a forma violenta de “dialogar” do adolescente.
 Na voz dela uma sentença:
 “Eu fiz o boletim de ocorrência, o que eu tinha que fazer, eu fiz. O resto, a vida vai se encarregar. A vida vai ser bem mais rude com ele do que eu fui. Eu não tenho nada a dizer para esse rapaz, o que eu queria dizer para ele era dentro da sala de aula, mas ele não quis escutar como aluno. Eu só tenho a dizer para os meus bons alunos, que são respeitosos, que respeitam seus pais, que são solidários a mim. A eles, sim, eu tenho muitas coisas bonitas a dizer” (profª. Márcia Friggi ao DC).
O problema é que ele logo estará em uma esquina te esperando caro leitor, para mais um soco no teu olho. Assim, esse problema é teu. Tua simples solidariedade é inútil. Tua indignação deve voltar-se para aqueles que propositalmente fizeram desse projeto de educação pública e das “reformas” as suas armas  para calar e sufocar a classe trabalhadora.
É preciso encerrar esse texto dizendo: a luta é de classe e o espaço da escola e da educação é o espaço do exercício dessa luta. Ao negá-lo, ao negligenciá-lo, matamos a luta e nos aliamos aos desígnios e desejos de um projeto que não é o nosso e sim da burguesia.
À professora Márcia Friggi a nossa solidariedade de classe.
Ao menino e aos meninos e meninas, dizer que essa professora e a educação é a melhor chance deles não levarem mais um soco da vida. Que somente nossa solidariedade, nosso fazer vai construir outro projeto de sociedade que não passa pela mercantilização da vida! 

sábado, 29 de abril de 2017

Sobre a validade de uma delação obtida com auxílio do pau-de-arara

Luís Felipe Bellintani Ribeiro
(professor de filosofia da UFF)

O título deste pequeno texto é meio estúpido, mas bem adequado à estupidez dos tempos que correm.
Quem pensava que os princípios do pomposamente chamado “Estado democrático de Direito”, vulgo “civilização”, eram favas contadas por estas paragens ocidentais, não titubearia em responder a quem lhe apresentasse este título na forma de pergunta: “nenhuma validade”, com todas as exclamações possíveis no encalço, acompanhadas de vocativos irônicos como “ó cara pálida”, de interjeições onomatopaicas como “ppffff” ou “dããã”, e de gestos performáticos como o de enfiar uma casquinha de sorvete imaginária na própria testa.
Isso há uns quatro, cinco anos atrás.
Mas estamos no Brasil de 2017, este imenso Projac a céu aberto no coração da América tropical.
Povoa-o bizarra tribo, que cultiva o estranho hábito de desjejuar, almoçar, lanchar, jantar e cear com um aparelho de TV metido nas fuças. Seja na própria casa, num boteco pé-sujo, num restaurante a quilo ou até num restaurante mais chique, desses em que se vai com a namorada em aniversários de namoro (até hoje não entendi o que faz o casal achar normal entrelaçar romanticamente as mãos com o William Bonner chovendo perdigotos eletrônicos sobre seus pratos desde um televisor fininho dependurado na parede).
O que era pra dar indigestão mais parece tempero sine qua non, tipo sal, óleo, alho ou cebola.
“Liga a Grobo aí, seu garçom, se não a gororoba não desce”, subentende-se o subtítulo no subconsciente do brasileiro médio.
Pois é, a Globo.
Fatidicamente a Globo.
Inexoravelmente a Globo.
Quando não é Globo, é uma quase-Globo piorada, o que dá no mesmo.
Vale Bom dia Brasil, vale Encontro com Fátima Bernardes, vale Sessão da Tarde, vale Globo Esporte, vale RJ TV, vale novelinha das 5, das 6, das 7, das 9, vale a minissérie que é a novelinha das 11, vale até o Vale a Pena Ver de Novo.
O brasileiro traça qualquer coisa da Globo numa boa. Tudo para não encarar o hipotético vácuo angustiante, solitário, silencioso, estático, amorfo, incolor, da visão pavorosa de uma televisão desligada (ai, meu deus, que medo dessa hipótese).
Hipotético porque, na real, ela sempre já está ligada.
É uma onipresença monopolística de fazer corar a emissora estatal da Coreia do Norte (e os caras ainda arrotam capitalismo 24 horas ao dia pra cima de moi, quer dizer, de nous tous...).
Não estranha que seja necessário trazer à liça a questão do título deste texto. “É que”, como diz Arnaldo Antunes, “a televisão me deixou burro, muito burro demais, agora todas as coisas que eu penso me parecem iguais”, e o basiquinho de outrora virou altas filosofias do futuro.
Que há retrocesso civilizatório qualquer um que vá urinar na hora da propaganda entre um plim-plim e outro (desde que no banheiro não haja outro televisor, bem entendido) percebe.
A questão é extensão do retrocesso.
Voltamos para aquém do momento histórico em que finalmente deixamos de sentir a vergonha de ver a sexta ou sétima economia do planeta constar no mapa da fome da ONU?
A acompanhar os próximos capítulos da novelinha “Brasil”.
As jornalistas da Globo, com aquele indefectível timbre de voz de jornalista da Globo – tipo: “mamãe, olha como eu exalo credibilidade” –, hão de nos sonegar mais essa informação, mas os capítulos da novelinha passarão na blogosfera; nem tudo está perdido.
Voltamos para aquém da constituição de 1988?
Deixo a resposta ao leitor concidadão; ops, con..., con..., o que mesmo?
Voltamos para aquém da era Vargas?
(Ainda chamam de “modernização”...)
Não, nem vou perguntar se voltamos para aquém de 1789, porque, convenhamos, acho que nunca fizemos cair nossa Bastilha, que por aqui se chama “casa-grande-e-senzala”.
Da perspectiva de uma sociedade patrimonialista escravocrata, toda tentativa de proclamar, enfim, a república burguesa é taxada a priori de comunismo bolivariano. Coisas do relativismo. Vendo de lá onde está o PSTU, o mesmo troço tem a fisionomia de reacionarismo de direita. Pobre de quem ficou no meio do corredor polonês...
Mas, peraí! Quando a coisa chega à flexibilização da presunção de inocência, à flexibilização do devido processo legal, à indistinção entre acusado e condenado, ao uso de tortura, para obtenção de confissão (seja o pau-de-arara stricto sensu, seja a ameaça de mofar na cadeia até onde der na telha do juiz), aonde é que fomos parar?
Qualquer um, numa googlada (acabei de fazê-lo), descobre que o livro de Beccaria, Dei delitti e delle pene, é de 1764.
Trevas (para ficar na metáfora do Iluminismo).
E esse negócio de primeiro achar o criminoso para depois achar o crime? Tenho a impressão de remeter à caça às bruxas da Idade Média. Tenho a impressão.
Enfim, meu leitor, não vou cansá-lo mais. O senhor que conhece um pouco de Direito Romano (não conheço patavina), poderia certamente estender ainda mais essa viagem no tempo em marcha ré.
Gostaria só de deixar-lhe, para sua reflexão própria, duas citaçõezinhas tiradas da filosofia grega antiga, onde circulo um pouco mais à vontade. Coisa bem velha, portanto. Uma é de Antifonte (480-411 a. C.). Outra, de Aristóteles (384-322 a. C.). Que, convenhamos, não são nenhuns bolivarianos. Elas tematizam um expediente proto-jurídico comum na época de pré-Direito, que os gregos chamavam de básanos, o “interrogatório sob tortura”.

Francisco de Goya y Lucientes, Quien lo puede pensar!
série Álbun C, 1810-1811
fonte: https://www.goyaenelprado.es/
Tive a ideia quando, ao ler com minha filha de dez anos (portanto dessa geração que trocou a tela da Globo pela do iPhone, a qual talvez não seja menos porcaria, mas, auspiciosamente, ao menos não é mais a da Globo) uma versão infantil do Corcunda de Notre-Dame, resolvi perguntar a ela por que, afinal, Esmeralda tinha assumido um crime, se na verdade foi Frollo que o cometeu.
Ela, do alto de sua década vivida, sem titubear respondeu: “quando ela viu os instrumentos de tortura, não quis nem saber, disse logo o que o guarda queria ouvir”.
“Mas ela sabia que ia ser enforcada”, retruquei.
“Mesmo assim, papai; na hora é o que todo mundo faz; quem sabe depois ela não conseguia fugir da prisão a tempo de não ser enforcada?”
“E se ao invés de ser enforcada ela, ao dizer o que o guarda queria ouvir, ganhasse em troca a liberdade?”
“Tá brincando, papai?”
(...)
Às citações em traduções próprias, às quais, por precaução, faço acompanhar os respectivos originais em grego (transliterado em caracteres latinos), para simples conferência de fidedignidade.
Sei lá, não vá alguém querer me conduzir coercitivamente por tradução comunista de texto clássico.
Grifos meus.

ANTIFONTE, Acerca do assassinato de Herodes (discurso de defesa de Helo, 49-50):

Skopeîte dè, ô ándres, kaì ek toîn lógoin toîn androîn hekatéroin toîn basanisthéntoin tò díkaion kaì tò eikós. Ho mèn gàr doûlos dýo lógo élege. totè mèn éphe me eirgásthai tò érgon, totè dè ouk éphe; ho dè eléutheros oudépo <kaì> nûn eíreke perì emoû phlaûron oudén, tê(i) autê(i) basáno(i) basanizómenos. Toûto mèn gàr ouk ên autô(i) eleutherían proteínantas hósper tòn héteron peîsai; toûto dè metà toû alethoûs eboúleto kindyneúon páskhein  hó ti déoi, epeì tó ge symphéron kaì hoûtos epístato, hóti tóte paúsoito strebloúmenos, hopóte eípoi tà toútois dokoûnta. Potéro(i) oûn eikós esti pisteûsai, tô(i) dià télous tòn autòn aeì lógon légonti, è tô(i) totè mèn pháskonti totè d’oú? allà kaì áneu basánou toiaútes hoi toùs autoùs aieì perì tôn autôn lógous légontes pistóteroí eisi tôn diapheroménon sphísin autoîs.

Examinai, ó bravos juízes, a partir de cada um dos discursos dos dois homens interrogados, o justo e o verossímil. Um, o escravo, falou em dois sentidos: ora disse que eu cometi o crime, ora disse que não. O outro, o homem livre, até agora não disse nada de mau a meu respeito, e ele foi interrogado sob a mesma tortura. Pois a esse último não era possível convencer pela promessa de liberdade como ao outro. Ele voluntariamente correu o risco de sofrer o que fosse preciso para estar do lado da verdade, mesmo sabendo que cessariam de torturá-lo na roda, se falasse o que lhes parecia conveniente. Em qual dos dois é razoável confiar? No que até o fim disse sempre as mesmas coisas ou no que ora disse isso, ora aquilo? Em todo caso, mesmo sem a tal tortura, aqueles que mantêm sempre os mesmos discursos sobre as mesmas coisas são mais confiáveis que os que estão em desacordo consigo mesmos.

ARISTÓTELES, Retórica I, 15d, (1376b31-1377a10):

hai dè básanoi martyríai tinés eisin, ékhein dè dokoûsi tò pistón, hóti anágke tis prósestin. oúkoun khalepòn oudè perì toúton eipeîn tà endekhómena, ex hôn eán te hypárkhosin oikeîai aúxein éstin, hóti aletheîs mónai tôn martyriôn eisin haûtai, eán te hypenantíai ôsi kaì metà toû amphisbetoûntos, dialýoi án tis talethê légon kath’hólou toû génous tôn basánon: oudèn gàr hêtton anagkazómenoi tà pseudê légousin è talethê, kaì diakarteroûntes mè légein talethê, kaì rha(i)díos katapseudómenoi hos pausómenoi thâtton. deî dè ékhein epanaphérein epì toiaûta gegeneména paradeígmata hà íasin hoi krínontes. [deî dè légein hos ouk eisìn aletheîs hai básanoi: polloì mèn gàr pakhýphrones hoi kaì lithódermoi kaì taîs psykhaîs óntes dynatoì gennaíos egkarteroûsi taîs anágkais, hoi dè deiloì kaì eulabeîs prò toû tàs anágkas ideîn autôn katatharroûsin, hóste oudèn ésti pistòn en basánois.]


As confissões sob tortura são testemunhos peculiares, que parecem conter credibilidade porque certo constrangimento é acrescentado. Não é difícil entender quais destas confissões cada uma das partes dirá serem as aceitáveis. Se elas forem favoráveis a uma das partes, é possível ampliá-las, dizendo que elas são os únicos testemunhos verdadeiros, se forem contrárias e a favor da parte adversária, poder-se-ia desconstruí-las dizendo a verdade sobre o gênero inteiro desse tipo de confissão: as pessoas submetidas a constrangimento não dizem menos coisas falsas que verdadeiras; os mais resistentes nem por isso hão de dizer a verdade, enquanto outros facilmente mentem para cessar mais rápido com a tortura. É preciso que os juízes remontem estas declarações a fatos exemplares que sejam de seu conhecimento. [É preciso dizer que não são verdadeiras as confissões sob tortura: muitos, com efeito, são durões e cascudos, e têm almas capazes de resistir nobremente aos constrangimentos, outros são covardes e tímidos, e só de ver a iminência do constrangimento se exasperam, de modo que não há nada de confiável nas confissões sob tortura.

PS: O colega Flávio Zimmermann me envia preciosa contribuição, um trecho dos Ensaios de Montaigne (II, 5), que vai no mesmo sentido do de Aristóteles:


“A tortura é uma invenção perigosa que parece antes pôr à prova a resistência à dor do que a insinceridade. Quem a não pode suportar esconde a verdade tanto quanto quem a suporta; pois por que a dor o levaria a confessar o que é mais do que o que não é? E, inversamente, se quem não cometeu o que lhe recriminam é bastante resistente para suportar a tortura, por que não o há de ser o culpado que em tal circunstância joga a vida? [...] “A dor obriga o próprio inocente a mentir.” [Públio Siro] Daí ocorre que aquele a quem o juiz inflige a tortura para não se expor a condenar um inocente, na realidade morre inocente e torturado. Muitos acusados sob os efeitos da tortura confessam o que não fizeram. [...] Muitos povos, menos bárbaros a esse respeito do que os gregos e os romanos que assim os chamavam, achavam horrível e cruel torturar alguém cuja culpabilidade não estivesse estabelecida. Que culpa terá ele de nossa ignorância? Não somos injustos em obrigá-lo a suportar coisa pior do que a morte, a fim de não matá-lo sem razão? E não se negará que assim seja, pois vemos muitos inocentes preferirem a morte a submeter-se a tal meio de informação mais penoso do que a execução e que pela sua violência não raro acarreta de antemão a morte.”

terça-feira, 11 de abril de 2017

A tagarelice dos convencidos

Se taciturno foi o adjetivo que vingou ao nome de Heráclito por uma vertente da tradição, ao menos completamente injusta não foi a designação sobre seu pensamento, cuja economia da palavra tem a ver com a impossibilidade de uma separação: entre a sabedoria do dito e a educação da escuta. “Pensar sensatamente”, diz o fragmento 112, “é virtude máxima e sabedoria é dizer (coisas) verídicas e fazer segundo a natureza, escutando”. Não há como pensar sensatamente, nem dizer coisas verdadeiras, se não existe uma disposição que se mantenha no limite da natureza, aquela que nos dá precisamente a consciência de nosso próprio limite, entre a infinidade do céu e a escassez da terra. Não há pessoa sensata, portanto, que fale pelos cotovelos, ouça apenas o que se ajusta a sua ideia e julgue sempre ter razão: a sua razão. O filósofo Ortega y Gasset, n' A rebelião das massas, acusa a perda da audição por parte do homem médio contemporâneo: “Para que ouvir se já tem dentro o quanto faz falta? Já não é época de escutar, senão, ao contrário, de julgar, de sentenciar, de decidir”. Por isso esse homem está empanturrado de opiniões e não abdica de impô-las para mantê-las (como quer manter sua classe, suas posses e seus nomes de família). Há uma longa tradição, grega e latina, fundada no aprendizado da escuta. Há anedotas como a do filósofo que, hospedado por um amigo, dormia com a mão esquerda sobre seu membro e a direita sobre a boca, pois era preciso segurar mais a língua do que seu sexo. Anedotas que revelam o perigo e a inconveniência da tagarelice


Salvator Rosa, Autorretrato, 1641
(a inscrição latina diz: Ou cala, ou diga algo melhor que o silêncio)
fonte da imagem: http://www.ciudadpintura.com/
Sobre isso Plutarco escreveu, mais de quatro séculos depois de Heráclito: um tratado sobre o tagarela e outro sobre a escuta, no início da era cristã. Os tratados demonstram a preocupação de se medir a língua para se aprender o necessário e não dizer além do suficientemente justo a cada situação: de quem ouvi o que falo? por que falo a quem digo? o que realmente sei do que já disse? E para se aprender qualquer coisa, o primeiro vício a ser vencido é o impulso de falar, sem ponderar a escuta. Ou seja, é preciso fechar o bico e baixar as orelhas, como se diz popularmente. A barbárie do tagarela é justamente aquela que o encerra em si mesmo, como presa de juízos precipitados ou de um acúmulo de informações sem horizontes teóricos para problematizá-las. Em Plutarco, o ouvido do tagarela não se comunica com a alma, mas com a língua (Sobre a tagarelice). Mal escuta, ricocheteia no céu da boca e se debate para devolver imediatamente o que não penetrou na alma. Pois o que ouve já se encontra sitiado por julgamentos em razão dos quais a língua não resiste a responder, opinar, qualificar, julgar, sobretudo se parecer contrário ao que já tem dentro de si. E se há na percepção alguma janela aberta para o universal, uma passagem para a compreensão do outro com os quais vivemos ou com cujas obras nos encontramos, a alma do tagarela patina no lodo bárbaro de suas próprias convicções, sem que seu dito ou ouvido receba do mundo a diferença que faz o mundo ser mundo. “Um homem tolo gosta de se empolgar a cada palavra” (fr. 87). Aqui Heráclito deixa de ser taciturno e por pouco não rimos dos tolos. E quantas palavras não precisaríamos ouvir! Evitemos citar os tolos, afinal quanto ainda é preciso calar! e para que dar aos tolos reputação? Quem já tem tudo a dizer, pouco sabe. Pode até saber muito de algo, mas não quer dizer que seja capaz de pensar sobre o todo, nem que seja útil ou razoável o seu discurso para os outros seres deste planeta. E pode até bem dizer retoricamente, na mesma proporção em que maldiz eticamente. Entre ditos e malditos, o tagarela acabará um dia discursando apenas diante de seus espelhos ou terá de se calar na frente do primeiro tirano para o qual sequer a lisonja parecerá convincente.


Jason de Lima e Silva

nota: este fragmento é uma versão alterada do ensaio A barbárie sem o discurso e o discurso filosófico como educação do humano, publicado no livro O discurso da civilização e o discurso da barbárie (org. José Cláudio Morelli Matos, 2014): 
https://issuu.com/editorausj/docs/o_discurso_da_civiliza____o_e_o_dis

segunda-feira, 3 de abril de 2017

Estética e política: prefácio a Leandro Cisneros

Quando o grande Ciro domina a Babilônia e fortifica a cidade, após entrar no palácio, profere um discurso, segundo nos conta Xenofonte. Para ser virtuoso, diz, não é suficiente tê-lo sido uma vez, é necessário cultivar sempre suas virtudes: “Assim como as artes perdem seu brilho quando desprezadas, e os corpos seu vigor pela relaxação, também a prudência, a temperança e a fortaleza degeneram por falta de cultura. Não nos deixemos pois engodar pelos atrativos do deleite”. (Xenofonte, Ciropedia, col. W. M. Jackson, 1956) A necessidade do cultivo de si corresponde a um imperativo do poder: para ser digno de governar, é necessário ser mais virtuoso do que o povo dominado. A questão já colocada desde Alcibíades de Platão: como governar o outro sem primeiramente governar a si mesmo? Tarefa para uma vida, sob o princípio de que é sempre necessária fazê-la e refazê-la a todo momento, como obra que se orienta entre o ideal de excelência das ações e a imprevisibilidade do mundo. Os gregos possuíam essa consciência, a ponto de compreenderem e respeitarem o poderoso rei persa helenicamente, o que pressupõe antes medir o valor do grego a partir do outro, não apenas daquilo que no outro pode ser reconhecido, mas sobretudo reverenciado humana e universalmente. O governo de si é condição e finalidade da política como arte de governo dos outros, eis o princípio. A poética das palavras e das ações não se separa de uma ética das paixões: e a política está no cruzamento de ambas as virtudes.
Mas o que Kant teria a ver com tudo isso? Não há Ilustração sem esforço, assim como não há civilização sem a superação da barbárie que recomeça a cada vez que nos deixamos levar pela dispersão ou obstinação dos impulsos. E é justamente por isso que a política não pode abdicar do particular contingente: primeiro, como crítica permanente ao perigo da hegemonia do universal cujo modelo de ação se oponha às particularidades e, segundo, como horizonte aberto na ação de alguns seres humanos que cultivam a diferença consigo mesmos: filhos inquietos e incansáveis de seu próprio tempo. Leandro Marcelo Cisneros muito bem escreve: “O movimento da cultura é resultante do esforço de cada indivíduo de tirar de si mesmo seus talentos naturais, com os quais enfrenta a resistência alheia e, assim, aproveitar de todas as formas de experiência possíveis para aumentar sua capacidade de agir.”

Antoine Watteau, Le donneur de serenade, c. 1715
Musée Condé, Chantilly, France
Fonte da imagem: https://www.wikiart.org/en/antoine-watteau/the-serenader

Neste seu livro, há o esforço de não apenas traduzir Kant para o nosso tempo, mas de fazê-lo falar sobre uma questão que permanece aberta para nós: qual o sentido de se pensar esteticamente a liberdade política, mais do que isso, o quanto é necessário à política comprometer-se à estética, sobretudo para não perder o que ainda se pode esperar do humano, à medida que cada qual seja capaz de exigir a excelência de si mesmo. A audácia de saber na divisa do Iluminismo corresponde à coragem de fazer o melhor uso possível da razão e de seus talentos naturais por um motivo tão suficiente quanto justo à nossa condição: favorecer a potência da ação pessoal e coletiva. Resistir, em contrapartida, à ignorância. E quando se trata de julgar, faculdade na qual se funda a estética kantiana, o gosto que pressupõe tal inclinação não está submetido à particularidade de um interesse encerrado no direito de cada qual gostar ou desgostar a seu modo e do que bem quiser, como átomo que disputa seu lugar no mundo, defendendo-se. O que faz o estético do juízo a propósito do belo é a possibilidade universalizar sua experiência, de torná-la comunicável. É o prazer de apreender e dizer a beleza a ponto de vivificar o ânimo não unicamente de quem o julga, mas potencialmente de todos que possam perceber aquilo que os ultrapassa, pois ultrapassa o idiossincrático do deleite na contemplação, que se demora na intensidade de seu próprio prazer. Afinal, o prazer do belo, não privadamente deleitável, permite o jogo livre entre o que ainda não pode ser conceituado pelo entendimento, nem tão somente sentido pela imaginação, segundo uma conformidade a fins que se pressente, mas nem parte de, nem chega a, lugar algum, justamente porque não é determinante, e sim, na linguagem de Kant, reflexionante. Basta a esse juízo perceber o harmônico jogo entre as faculdades de imaginação e do entendimento, basta-lhe isso para supor haver uma intenção de ordem nas coisas da arte e da natureza: sua necessária ilusão metafísica.
Sem dúvida, embora dado empiricamente na contingência do mundo, o belo não se produz sem o exercício refinado das faculdades. Se, por um lado, imaginação e entendimento são disposições naturais do humano, o seu jogo reciprocamente ativo e criativo no ânimo, reclama a necessidade de cada qual cultivar a percepção da beleza nos fenômenos do mundo, sejam obras da natureza ou obras humanas. Não é por menos que governantes gregos como Péricles e imperadores romanos como Adriano incentivaram a arte e a cultura de seus povos, à medida também que exerciam o domínio sobre si e sobre os demais. A raridade do belo se impõe ao gosto se o gosto se mede pelo hábito da crítica: não segundo o capricho de suas inclinações, mas conforme o que há de universal na representação. Só entre mim e o outro isso é possível: o outro que é a tradição transformada no esclarecimento e o herdeiro desconhecido do presente, e mais efetivamente, os outros que conhecemos e nos conhecem durante a vida. Se apenas entre mim e o outro dá-se a liberdade no jogo da representação, é porque somos tão irredutíveis empiricamente a um modelo absoluto de validade universal para ação, quanto transcendentais o bastante para não podermos reduzir o eu a sensações, ou a ações, sem forma alguma. No caso da política, Leandro Marcelo Cisneros não lhe nega a determinação do juízo, mas o compromete no exercício reflexivo do juízo estético, e vice-versa. E se a clareza sobre o que é formalmente bom é base para a orientação das normas de uma comunidade política e racional, a experiência do particular universalizável não pode ser elidida à custa do império do conceito, e sob o risco de uma única razão no governo do outro. Sem esse horizonte, não haveria esperança nem esforço para sentirmos, pensarmos e agirmos diferentemente na história. Não haveria portanto liberdade.
Mas isso tudo é muito provisório e insuficiente para o que este livro tem a nos dizer. Que o leitor encontre nele não apenas oportunidade para aprender acerca do pensamento de Kant, com o rigor que lhe é próprio e a partir do qual Leandro Marcelo Cisneros o interpreta para, na medida de seu discurso, pensar por si mesmo. Que o leitor encontre por fim o prazer vivo e compartilhado no mérito de um livro de filosofia: o de nos fazer e permitir pensar. 
Jason de Lima e Silva

ps: este prefácio não citou a importância do pensamento de Hannah Arendt como chave para a interpretação de Cisneiros sobre Kant, mas o leitor do livro terá a oportunidade de percebê-lo, e entenderá em que medida também Cisneiros fará sua própria interpretação do problema entre estética e política na filosofia de Kant.

Cf. CISNEROS, Leandro Marcelo. O juízo reflexionante estético e a liberdade política. Saarbrücken, Novas edições acadêmicas, 2017.
https://www.nea-edicoes.com/catalog/details//store/pt/book/978-3-330-75940-4/o-ju%C3%ADzo-reflexionante-est%C3%A9tico-e-a-liberdade-pol%C3%ADtica

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Francis Bacon e Caravaggio

o duplo de si mesmo

 Jason de Lima e Silva

Vê-se a imagem desfigurada de um homem: ele se vira para uma superfície na qual um rosto se separa de si mesmo. É o Retrato de George Dyer num espelho, pintado em 1968 por Francis Bacon. O espelho abre uma fenda no rosto, tão deformado quanto o corpo, embora seja possível ver um personagem sentado, aparentemente de pernas cruzadas, de paletó e gravata. Há uma linha branca verticalmente inclinada que faz em dois também o corpo do modelo. O rosto de George Dyer, ao se voltar para trás, encontra a imagem que não é sua, a imagem de um rosto interrompido, ou ainda, duplicado no duplo do espelho. Três anos mais tarde, Dyer, o companheiro de Bacon, suicida-se. Interrompe-se a vida de um homem, mas Bacon o continua pintando, como no Tríptico, maio-junho, 1973: cenas do terrível momento da morte do amado. Um homem nu se desintegra entre seu vômito e seu sangue no interior de um banheiro cujo fundo é negro. George Dyer foi encontrado de fato morto no banheiro de seu quarto de hotel: uma hora antes da retrospectiva de Bacon no Grand Palais em Paris, em 1971.
Francis Bacon, Retrato de George Dyer num espelho1968
O Narciso de Caravaggio se apoia à beira do lago, quase adormecido sobre a imagem que encontra na superfície escura da água: a imagem do duplo pela qual apaixonadamente se entorpece até a morte (a palavra Narciso em grego se aproxima de narke, entorpecimento). Conta Ovídio, em suas Metamorfoses, que Narciso se espanta e prende o rosto imóvel no momento em que se vê. No seu nascimento, quando perguntado se a criança teria vida longa, o velho adivinho Tirésias profeticamente respondeu: Si se non noverit. "Se não se conhecer". Mas Narciso se conheceu sem querer e sem querer quis quem conheceu. Ao beber a água, "ama a esperança sem corpo, julga ser corpo, o que sombra é": spem sine corpore amat, corpus putat esse, quod umbra est, no verso de Ovídio. O amor de Narciso por sua sombra anuncia seu fim como amante e prepara sua metamorfose como flor de Narciso. "Oxalá eu pudesse de nosso corpo me separar", lamenta o jovem num certo momento. Já que é impossível amar o outro que descobre ser ele mesmo, já que é impossível se duplicar para amar quem vê refletido na fonte, nada mais resta senão a morte. No extremo de seu desejo, a morte o reintegra à unidade da natureza. A imagem do belo rapaz na fonte chama Narciso no silêncio do bosque e ele morre pelo outro que não alcança, pelo outro que é si mesmo: o amado amante, a sombra de sua ilusão sem fim.
 Michelangelo da CaravaggioNarciso, 1599
Enquanto isso, na imagem de Bacon, o olhar voltado para trás de Dyer ao espelho, num movimento de relance, não encontra o mesmo (talvez porque tenha sido o reflexo o próprio surpreendido, que ao partir submete o rosto à sua esquiva). O mesmo que já não se mostra como tal, que não se fixa, que é orelha, cabeça e a mancha talvez de um nariz, um conjunto de elementos que não traduzem diretamente o retrato de George Dyer. Ainda assim, Bacon nos mostra alguma realidade (bem vemos ali um homem sentado, o que parece um espelho, o que se supõe o reflexo). A impressão caótica no jogo das formas expressa o que na aparência não se mostra igualmente a todos: o próprio sistema nervoso do artista. Bacon diz a seu amigo David Sylvester, numa das entrevistas, que suas imagens querem ser fiéis a seu sistema nervoso e que sua pintura tem a ver com seu desespero eufórico, sua psique. A desfiguração de Dyer na repartição de seu duplo no espelho expõe o desespero de Bacon, a sua alma cheia de nervos, que como artista quer capturar a imagem do outro em seu movimento, ou seja, em seu limite e em sua estranheza, na dor ou no prazer, por isso distorce e dilacera seus modelos, lançados como estão pintor e modelo no mundo entre a aparência que se modifica e a aparição que se mostra. O eufórico Caravaggio, violento muitas vezes, pinta com lirismo (e naturalismo) o seu Narciso cerca de 1599 e, embora menos acentuadamente dramático que outros de seus quadros, a suspensão de um torpor erótico não livra o personagem da fatalidade que a tradição conhece. O Narciso de Caravaggio vive o instante de sentir-se ébrio de amor quando à fonte foi cessar a sede e outra sede nasceu, como canta o poeta. E no instante de virar seu rosto, vemos George Dyer cindido na duplicação de sua imagem. Enquanto Narciso é seduzido pelo duplo, só superado na interrupção do desejo pela própria morte, o retrato de Dyer duplica seu rosto no espelho que o reflete ainda vivo para a pose. Vivo então, mas já repartido.

 Francis Bacon, Tríptico – maio-junho, 1973 (detalhe)
Narciso encontra no outro o extremo de um desejo cujo fim só a natureza redimiria ao suprimi-lo, quando o corpo se une à sua impossibilidade. Dyer é desde sempre outro que não ele, o duplo de seu retrato num espelho: o mesmo desespero de Bacon, ao qual não foi possível impedir-lhe a morte entorpecida por barbitúricos. O suicídio não revela exatamente o fracasso diante da própria existência, mas uma forma de idealização de uma vida que não é possível viver, diante da qual a vida real se torna uma sombra insuportável. Muitas pessoas desistem da vida pela imensa vontade de viver uma existência que nunca foi possível, mas sempre sonhada e até o limite esperada (ou duplicada até a morte do único, o real que se tornou desprezível para o outro que não é nada, senão o representado). Um homem pode esperar o pior de sua realidade, mas suportá-lo realmente é outra coisa. O desespero do artista talvez faça de sua arte a esperança provisória, e necessária, contra a violência natural da vida: para ver e expressar o instante que nos escapa da alma das coisas. A experiência da dor, nesse caso, serve de meio e fonte ao fazer de uma arte que possa ultrapassá-la, ou ao menos permiti-la como dor: não desejada, mas inevitável. Mas dor e arte parecem apêndices de prateleiras num mundo de tantas anestesias e entretenimentos. Há ainda lugar para o humano do homem, numa sociedade que valoriza clones e fantasmas cuja intimidade tão pouco se suporta quanto menos ainda tem algo a dizer e a mostrar publicamente?

Francis Bacon, Retrato de George Dyer andando de bicicleta, 1966