sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Francis Bacon e Caravaggio

o duplo de si mesmo

 Jason de Lima e Silva

Vê-se a imagem desfigurada de um homem: ele se vira para uma superfície na qual um rosto se separa de si mesmo. É o Retrato de George Dyer num espelho, pintado em 1968 por Francis Bacon. O espelho abre uma fenda no rosto, tão deformado quanto o corpo, embora seja possível ver um personagem sentado, aparentemente de pernas cruzadas, de paletó e gravata. Há uma linha branca verticalmente inclinada que faz em dois também o corpo do modelo. O rosto de George Dyer, ao se voltar para trás, encontra a imagem que não é sua, a imagem de um rosto interrompido, ou ainda, duplicado no duplo do espelho. Três anos mais tarde, Dyer, o companheiro de Bacon, suicida-se. Interrompe-se a vida de um homem, mas Bacon o continua pintando, como no Tríptico, maio-junho, 1973: cenas do terrível momento da morte do amado. Um homem nu se desintegra entre seu vômito e seu sangue no interior de um banheiro cujo fundo é negro. George Dyer foi encontrado de fato morto no banheiro de seu quarto de hotel: uma hora antes da retrospectiva de Bacon no Grand Palais em Paris, em 1971.
Francis Bacon, Retrato de George Dyer num espelho1968
O Narciso de Caravaggio se apoia à beira do lago, quase adormecido sobre a imagem que encontra na superfície escura da água: a imagem do duplo pela qual apaixonadamente se entorpece até a morte (a palavra Narciso em grego se aproxima de narke, entorpecimento). Conta Ovídio, em suas Metamorfoses, que Narciso se espanta e prende o rosto imóvel no momento em que se vê. No seu nascimento, quando perguntado se a criança teria vida longa, o velho adivinho Tirésias profeticamente respondeu: Si se non noverit. "Se não se conhecer". Mas Narciso se conheceu sem querer e sem querer quis quem conheceu. Ao beber a água, "ama a esperança sem corpo, julga ser corpo, o que sombra é": spem sine corpore amat, corpus putat esse, quod umbra est, no verso de Ovídio. O amor de Narciso por sua sombra anuncia seu fim como amante e prepara sua metamorfose como flor de Narciso. "Oxalá eu pudesse de nosso corpo me separar", lamenta o jovem num certo momento. Já que é impossível amar o outro que descobre ser ele mesmo, já que é impossível se duplicar para amar quem vê refletido na fonte, nada mais resta senão a morte. No extremo de seu desejo, a morte o reintegra à unidade da natureza. A imagem do belo rapaz na fonte chama Narciso no silêncio do bosque e ele morre pelo outro que não alcança, pelo outro que é si mesmo: o amado amante, a sombra de sua ilusão sem fim.
 Michelangelo da CaravaggioNarciso, 1599
Enquanto isso, na imagem de Bacon, o olhar voltado para trás de Dyer ao espelho, num movimento de relance, não encontra o mesmo (talvez porque tenha sido o reflexo o próprio surpreendido, que ao partir submete o rosto à sua esquiva). O mesmo que já não se mostra como tal, que não se fixa, que é orelha, cabeça e a mancha talvez de um nariz, um conjunto de elementos que não traduzem diretamente o retrato de George Dyer. Ainda assim, Bacon nos mostra alguma realidade (bem vemos ali um homem sentado, o que parece um espelho, o que se supõe o reflexo). A impressão caótica no jogo das formas expressa o que na aparência não se mostra igualmente a todos: o próprio sistema nervoso do artista. Bacon diz a seu amigo David Sylvester, numa das entrevistas, que suas imagens querem ser fiéis a seu sistema nervoso e que sua pintura tem a ver com seu desespero eufórico, sua psique. A desfiguração de Dyer na repartição de seu duplo no espelho expõe o desespero de Bacon, a sua alma cheia de nervos, que como artista quer capturar a imagem do outro em seu movimento, ou seja, em seu limite e em sua estranheza, na dor ou no prazer, por isso distorce e dilacera seus modelos, lançados como estão pintor e modelo no mundo entre a aparência que se modifica e a aparição que se mostra. O eufórico Caravaggio, violento muitas vezes, pinta com lirismo (e naturalismo) o seu Narciso cerca de 1599 e, embora menos acentuadamente dramático que outros de seus quadros, a suspensão de um torpor erótico não livra o personagem da fatalidade que a tradição conhece. O Narciso de Caravaggio vive o instante de sentir-se ébrio de amor quando à fonte foi cessar a sede e outra sede nasceu, como canta o poeta. E no instante de virar seu rosto, vemos George Dyer cindido na duplicação de sua imagem. Enquanto Narciso é seduzido pelo duplo, só superado na interrupção do desejo pela própria morte, o retrato de Dyer duplica seu rosto no espelho que o reflete ainda vivo para a pose. Vivo então, mas já repartido.

 Francis Bacon, Tríptico – maio-junho, 1973 (detalhe)
Narciso encontra no outro o extremo de um desejo cujo fim só a natureza redimiria ao suprimi-lo, quando o corpo se une à sua impossibilidade. Dyer é desde sempre outro que não ele, o duplo de seu retrato num espelho: o mesmo desespero de Bacon, ao qual não foi possível impedir-lhe a morte entorpecida por barbitúricos. O suicídio não revela exatamente o fracasso diante da própria existência, mas uma forma de idealização de uma vida que não é possível viver, diante da qual a vida real se torna uma sombra insuportável. Muitas pessoas desistem da vida pela imensa vontade de viver uma existência que nunca foi possível, mas sempre sonhada e até o limite esperada (ou duplicada até a morte do único, o real que se tornou desprezível para o outro que não é nada, senão o representado). Um homem pode esperar o pior de sua realidade, mas suportá-lo realmente é outra coisa. O desespero do artista talvez faça de sua arte a esperança provisória, e necessária, contra a violência natural da vida: para ver e expressar o instante que nos escapa da alma das coisas. A experiência da dor, nesse caso, serve de meio e fonte ao fazer de uma arte que possa ultrapassá-la, ou ao menos permiti-la como dor: não desejada, mas inevitável. Mas dor e arte parecem apêndices de prateleiras num mundo de tantas anestesias e entretenimentos. Há ainda lugar para o humano do homem, numa sociedade que valoriza clones e fantasmas cuja intimidade tão pouco se suporta quanto menos ainda tem algo a dizer e a mostrar publicamente?

Francis Bacon, Retrato de George Dyer andando de bicicleta, 1966

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Fragmentos de um golpe. VII.

         
Se a barbárie se alastra
E a gasolina é graxa
"A culpa é do Lula"
Se o petróleo é vendido
A Amazônia ocupada
O ministério é bandido
E a educação reformada
Para horas de fábrica
"A culpa é do Lula"
E as rebeliões nos presídios?
"Culpa do Lula"
E a crise da China?
"Culpa do Lula"
E a corrupção do Brasil
Acabou sem um pio?
Não sumiram as panelas?
O pato não viu!
"Culpa do Lula"
E se a democracia já era?
"Culpa do Lula"
Prende, mata e me engula
Tão fácil odiar
Quanto tudo perder
Quem acusa não vê
Que só malogra culpar
Talvez justo você
Não diga que arrependimento!
Mas sinta falta do tempo
De não supor piorar
Se decorou maldizer
Aprenda agora a calar

Willian Hogarth, A recompensa da crueldade, 1751 (aguá-forte e buril)
fonte: http://pintura.aut.org/SearchProducto?Produnum=127653
Jason de Lima e Silva

sábado, 4 de fevereiro de 2017

O fantástico de Goya em seus Caprichos

Vemos duendes vestidos de frades, velhos caveiras, degolações, mundo de sombras e assombrados, de ilusões e feitiçarias, de caretas e violações. O que se passa afinal na cabeça desse homem chamado Francisco de Goya y Lucientes? E se algo lhe passa à cabeça, porque nos intriga a obra, qual o estatuto de seu pensamento? Goya desenhou, pintou e gravou como artista. Sonhou, sofreu e amou como qualquer um de nós, humanos. Mas as suas gravuras lhe dão um caráter tão próprio à obra que fazem com que o artista ultrapasse de vez o homem, quando o artesão aragonês de Fuendetodos já havia sido ultrapassado pelo pintor de câmara do Rei Carlos III, em Madrid, no ano de 1789. Olhemos agora alguns de seus Caprichos, a primeira série de estampas de Goya, são oitenta gravuras oferecidas à venda em 1799. Veremos apenas algumas, ou seja, uma pequenina parte de toda a sua obra. Essas estampas iniciam uma sucessão de licenças que só são possíveis ao Goya maduro. Mais do que a maturidade cumulativa dos anos, o tempo de ter sofrido o impacto de uma doença que o deixou totalmente surdo, em 1792. A doença o converte decisivamente a si mesmo e os Caprichos fazem-no explorar o livre devaneio de sua imaginação. Sem dúvida, nessas gravuras, Goya pode até ser cômico, "cômico feroz", como escreveu Baudelaire, mas o "aspecto geral sob o qual vê as coisas é sobretudo fantástico", o que o faz um grande artista, "frequentemente assustador". (Alguns caricaturistas estrangeiros, 1857). E o fantástico pode estar situado no evento mais extraordinário possível, como na reunião das bruxas que chupam divertidamente crianças (Mucho hay que chupar, capricho 45), tanto quanto numa reunião ordinária de monges, cujas expressões se contorcem a ponto de parecerem criaturas não humanas (Estan calientes, capricho 13). Talvez mais assustador se torne Goya quanto mais próximo de nosso mundo esteja aquilo que não nos parece decisivamente humano. Mas por que Goya veria as coisas de modo fantástico?

Mucho hay que chupar, estampa 45, Caprichos, 1799
O termo fantástico vem do grego, phantastikós, e significa o que é relativo à imaginação, e deriva do verbo phaino, que significa aparecer, tornar e fazer visível. Goya é fantástico por duas razões: primeiro, seu pensamento aparece por invenções de imagens. Não se trata, obviamente, de um pensamento teórico, mas de imagens do pensamento que dialogam muitas vezes com legendas: imagens-figuras e imagens-palavras, em cujo jogo está justamente o nosso trabalho de interpretação. Ao mesmo tempo, tais imagens tornam visível o invisível: nossos pesadelos e devaneios. Nesse segundo sentido, o fantástico não é apenas o adjetivo para o pensamento plástico ou figurativo de Goya, mas antes, é a condição substantiva de seu peculiar modo de ver e pensar. Logo, não se trata apenas de um pensamento por imagens, mas de um pensamento cujo sentido extraordinário questiona profundamente o ordinário de nossa condição, no limite também do que lhe é miserável ou perverso. Goya faz aparecer verdadeiramente o que fantasiamos ou tememos, e às vezes também, o que não suportaríamos ver. Se os monstros de Bosch fazem parte de um mundo governado por leis próprias, distantes do humano, os personagens de Goya, comenta Todorov, “são nossos próximos, e até uma outra versão de nós mesmos”. (Goya à sombra das Luzes, 2011).

Que viene el coco, estampa 3, Caprichos, 1799
Esse fantástico modo de ver o mundo pode ser vislumbrado no reconhecimento do humano nos seres não humanos (seres sobrenaturais que à primeira vista não somos nós, os quais algumas vezes se situam num espaço que não nos pertence, sem chão ou profundidade); mas seu fantástico também pode ser a expressão do que não vemos propriamente com os olhos, mas sentimos e pressentimos, podemos temer ou gozar sordidamente. Através de sua imaginação vemos por imagens o que não nos é visível e que, no entanto, é parte dos fenômenos do mundo, é real. Como real é o medo infantil e o prazer no sorriso da mãe diante do Coco, invocado na tradição para assustar as crianças: vemos o que é invisível a olhos nus e, ao mesmo tempo, visto na evidência do pavor (Que viene el Coco, Caprichos 3). Curioso também em Goya, é aparecer muitas vezes algo extraordinário para nós quando assim não se traduz no interior da própria representação. Suponho haver aí, entre o fantástico mundo cujo objeto é não humano e o fantástico da fantasia humana, uma terceira forma, talvez a mais espantosa e inquietante, a do fantástico nem totalmente humano, nem exatamente não humano, dado como encenação natural de uma cena extraordinária. Um bom exemplo é aquele do senhor com cara de macaco cortejando uma donzela (Mejor es holgar, Caprichos 73): no interior da cena, não surge o problema de sua representação, sua cara de macaco não é temida ou intrigante, em parte porque não é vista, em parte porque somos nós unicamente quem a vemos. Assim como ninguém na cena vê o sorriso maliciosamente à espreita da velha que media o galanteio. Melhor é folgar talvez porque seja inevitável o que há de acontecer, por interesses e razões que no caso desconhecemos: melhor é relaxar.

Hasta la muerte, 55, Caprichos 1799
Em todo caso, seja no reconhecimento do humano no não-humano (bruxas, duendes ou fantasmas), seja na representação do mundo invisível das sensações e da imaginação, seja, por fim, na autonomia do extraordinário no interior da representação, nos três casos, o fantástico de Goya produz uma impiedosa e necessária estranheza, ora mais cômica, ora mais grotesca. Estranheza por sua vez que nos desloca de uma ordem racional e segura da representação. Algo se irrompe do habitual e perguntamo-nos sobre o que acontece, entre a superstição popular e a ilusão que move a cada um. Até a morte a velha diante do espelho se enfeitará, afinal ela é apenas algo sobre o que suas ilusões se apoiam. Até a morte poderão rir de seu gesto, mas quem abdicará de suas próprias ilusões? A velha parece já fazer parte de outro mundo, mas a morte ainda não lhe venceu o que nela vê e sonha, para além do que é visto e repetido no espelho (Hasta la muerte, Caprichos 55). E ainda não se vão! (Caprichos 59): outra imagem de resistência à finitude, não pela forma lúdica do adorno e da vaidade, mas pelo desespero de criaturas nuas e decrépitas que suportam o peso da tumba, rezam, olham ao fundo para o céu ou se curvam angustiadamente à terra. Como aceitar a morte? Juntemo-nos para resisti-la!

Y aun no se van!, estampa 59, Caprichos, 1799
O grande mérito de Goya, percebe então Baudelaire, “consiste em criar a monstruosa verossimilhança: "Todas essas contorções, esses rostos bestiais, essas caretas diabólicas estão penetradas de humanidade. (Alguns caricaturistas estrangeiros). Penetradas de humanidade: aí é que podemos nos reconhecer no outro representado. Mas não é tão simples assim: não somos bruxas ou duendes, nem nos vemos com caras de macacos ou caretas diabólicas nas ruas. Não seguramos a lápide com as forças que aos poucos nos abandonam. Goya nos conduz ao encontro do que justamente evitamos pensar da absurda situação de se estar neste mundo, afinal, não pedimos para nascer nem morrer, e por mais moribundo que se esteja, quem não quer viver mais um pouquinho? No caso de suas máscaras, elas não escondem a face que as sustenta, ao contrário, as revela malignamente: Todorov é quem enfatiza esse ponto. Pelo artifício das máscaras, Goya faz aparecer o que são os homens que não são o que imediatamente parecem: o rosto é coberto por algo que não víamos, e assim desvelado do que nele mesmo se ocultava. Lembro o médico-jumento, que nada mais faz senão testemunhar o fim de seu paciente: nada pôde fazer ou nada fez de fato para salvá-lo? morreria o homem afinal de sua doença ou do próprio tratamento? teria o remédio virado veneno? Não sabemos. (De que mal morira?, Caprichos 40, 1797-1799). Em suas gravuras, como em suas pinturas de exceção, a exemplo das pinturas negras, o interesse de Goya, como diz Ortega y Gasset, é oblíquo: “Pinta-os precisamente porque são temas humanamente negativos”. E essa “falta de humana simpatia pelos seres que pinta é precisamente uma das causas de seu estilo”. (Papeles sobre Velasquez y Goya, 1950). Os Caprichos de Goya se movem contra a verdade do clero e as superstições populares, mas contra também o poder dos médicos, a autoridade dos juízes e a classe dos legisladores, poderes que passam a contar mais com razão do que com a crença, nos tempos modernos, o que não significa que sejam mais razoáveis ou menos arbitrários, na sua prática e na sua formação. O pensamento artístico de Goya retrata fantasticamente uma das condições de nossa humanidade, muitas vezes desumana: a condição que nos coloca no caminho não exatamente entre o humano e o divino, mas, no limite, entre a besta e o homem.

Jason de Lima e Silva

Ensaio publicado originalmente com o título O fantástico de Goya na revista Subtrópicos, 12, Florianópolis: Editora da UFSC, 2014: https://issuu.com/ayrtonsilveira/docs/subtropicos_n12.

Fonte das imagens: https://www.goyaenelprado.es/inicio/