o duplo de si mesmo
Jason de Lima e Silva
Vê-se a imagem desfigurada de um homem: ele se vira para uma superfície na qual um rosto se separa de si mesmo. É o Retrato de George Dyer num espelho, pintado em 1968 por Francis Bacon. O espelho abre uma fenda no rosto, tão deformado quanto o corpo, embora seja possível ver um personagem sentado, aparentemente de pernas cruzadas, de paletó e gravata. Há uma linha branca verticalmente inclinada que faz em dois também o corpo do modelo. O rosto de George Dyer, ao se voltar para trás, encontra a imagem que não é sua, a imagem de um rosto interrompido, ou ainda, duplicado no duplo do espelho. Três anos mais tarde, Dyer, o companheiro de Bacon, suicida-se. Interrompe-se a vida de um homem, mas Bacon o continua pintando, como no Tríptico, maio-junho, 1973: cenas do terrível momento da morte do amado. Um homem nu se desintegra entre seu vômito e seu sangue no interior de um banheiro cujo fundo é negro. George Dyer foi encontrado de fato morto no banheiro de seu quarto de hotel: uma hora antes da retrospectiva de Bacon no Grand Palais em Paris, em 1971.
Francis Bacon, Retrato de George Dyer num espelho1968 |
O Narciso de Caravaggio se apoia à beira do lago, quase adormecido sobre a imagem que encontra na superfície escura da água: a imagem do duplo pela qual apaixonadamente se entorpece até a morte (a palavra Narciso em grego se aproxima de narke, entorpecimento). Conta Ovídio, em suas Metamorfoses, que Narciso se espanta e prende o rosto imóvel no momento em que se vê. No seu nascimento, quando perguntado se a criança teria vida longa, o velho adivinho Tirésias profeticamente respondeu: Si se non noverit. "Se não se conhecer". Mas Narciso se conheceu sem querer e sem querer quis quem conheceu. Ao beber a água, "ama a esperança sem corpo, julga ser corpo, o que sombra é": spem sine corpore amat, corpus putat esse, quod umbra est, no verso de Ovídio. O amor de Narciso por sua sombra anuncia seu fim como amante e prepara sua metamorfose como flor de Narciso. "Oxalá eu pudesse de nosso corpo me separar", lamenta o jovem num certo momento. Já que é impossível amar o outro que descobre ser ele mesmo, já que é impossível se duplicar para amar quem vê refletido na fonte, nada mais resta senão a morte. No extremo de seu desejo, a morte o reintegra à unidade da natureza. A imagem do belo rapaz na fonte chama Narciso no silêncio do bosque e ele morre pelo outro que não alcança, pelo outro que é si mesmo: o amado amante, a sombra de sua ilusão sem fim.
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Enquanto isso, na imagem de Bacon, o olhar voltado para trás de Dyer ao espelho, num movimento de relance, não encontra o mesmo (talvez porque tenha sido o reflexo o próprio surpreendido, que ao partir submete o rosto à sua esquiva). O mesmo que já não se mostra como tal, que não se fixa, que é orelha, cabeça e a mancha talvez de um nariz, um conjunto de elementos que não traduzem diretamente o retrato de George Dyer. Ainda assim, Bacon nos mostra alguma realidade (bem vemos ali um homem sentado, o que parece um espelho, o que se supõe o reflexo). A impressão caótica no jogo das formas expressa o que na aparência não se mostra igualmente a todos: o próprio sistema nervoso do artista. Bacon diz a seu amigo David Sylvester, numa das entrevistas, que suas imagens querem ser fiéis a seu sistema nervoso e que sua pintura tem a ver com seu desespero eufórico, sua psique. A desfiguração de Dyer na repartição de seu duplo no espelho expõe o desespero de Bacon, a sua alma cheia de nervos, que como artista quer capturar a imagem do outro em seu movimento, ou seja, em seu limite e em sua estranheza, na dor ou no prazer, por isso distorce e dilacera seus modelos, lançados como estão pintor e modelo no mundo entre a aparência que se modifica e a aparição que se mostra. O eufórico Caravaggio, violento muitas vezes, pinta com lirismo (e naturalismo) o seu Narciso cerca de 1599 e, embora menos acentuadamente dramático que outros de seus quadros, a suspensão de um torpor erótico não livra o personagem da fatalidade que a tradição conhece. O Narciso de Caravaggio vive o instante de sentir-se ébrio de amor quando à fonte foi cessar a sede e outra sede nasceu, como canta o poeta. E no instante de virar seu rosto, vemos George Dyer cindido na duplicação de sua imagem. Enquanto Narciso é seduzido pelo duplo, só superado na interrupção do desejo pela própria morte, o retrato de Dyer duplica seu rosto no espelho que o reflete ainda vivo para a pose. Vivo então, mas já repartido.
Francis Bacon, Tríptico – maio-junho, 1973 (detalhe) |
Narciso encontra no outro o extremo de um desejo cujo fim só a natureza redimiria ao suprimi-lo, quando o corpo se une à sua impossibilidade. Dyer é desde sempre outro que não ele, o duplo de seu retrato num espelho: o mesmo desespero de Bacon, ao qual não foi possível impedir-lhe a morte entorpecida por barbitúricos. O suicídio não revela exatamente o fracasso diante da própria existência, mas uma forma de idealização de uma vida que não é possível viver, diante da qual a vida real se torna uma sombra insuportável. Muitas pessoas desistem da vida pela imensa vontade de viver uma existência que nunca foi possível, mas sempre sonhada e até o limite esperada (ou duplicada até a morte do único, o real que se tornou desprezível para o outro que não é nada, senão o representado). Um homem pode esperar o pior de sua realidade, mas suportá-lo realmente é outra coisa. O desespero do artista talvez faça de sua arte a esperança provisória, e necessária, contra a violência natural da vida: para ver e expressar o instante que nos escapa da alma das coisas. A experiência da dor, nesse caso, serve de meio e fonte ao fazer de uma arte que possa ultrapassá-la, ou ao menos permiti-la como dor: não desejada, mas inevitável. Mas dor e arte parecem apêndices de prateleiras num mundo de tantas anestesias e entretenimentos. Há ainda lugar para o humano do homem, numa sociedade que valoriza clones e fantasmas cuja intimidade tão pouco se suporta quanto menos ainda tem algo a dizer e a mostrar publicamente?
Francis Bacon, Retrato de George Dyer andando de bicicleta, 1966 |