Vemos duendes vestidos
de frades, velhos caveiras, degolações, mundo de sombras e assombrados, de ilusões
e feitiçarias, de caretas e violações. O que se passa afinal na cabeça desse
homem chamado Francisco de Goya y Lucientes? E se algo lhe passa à cabeça, porque nos intriga a obra, qual
o estatuto de seu pensamento? Goya desenhou, pintou e gravou como artista. Sonhou,
sofreu e amou como qualquer um de nós, humanos. Mas as suas gravuras lhe dão um
caráter tão próprio à obra que fazem com que o artista ultrapasse de vez o
homem, quando o artesão aragonês de Fuendetodos já havia sido ultrapassado pelo
pintor de câmara do Rei Carlos III, em Madrid, no ano de 1789. Olhemos agora alguns
de seus Caprichos, a primeira série
de estampas de Goya, são oitenta gravuras oferecidas à venda em 1799. Veremos
apenas algumas, ou seja, uma pequenina parte de toda a sua obra. Essas estampas
iniciam uma sucessão de licenças que só são possíveis ao Goya maduro. Mais do
que a maturidade cumulativa dos anos, o tempo de ter sofrido o impacto de uma
doença que o deixou totalmente surdo, em 1792. A doença o converte
decisivamente a si mesmo e os Caprichos
fazem-no explorar o livre devaneio de sua imaginação. Sem dúvida, nessas gravuras, Goya pode até ser cômico, "cômico feroz", como escreveu Baudelaire, mas o "aspecto geral sob o qual vê as coisas é sobretudo fantástico", o que o faz um grande artista, "frequentemente assustador". (Alguns caricaturistas estrangeiros, 1857). E o fantástico pode estar
situado no evento mais extraordinário possível, como na reunião das bruxas que
chupam divertidamente crianças (Mucho hay
que chupar, capricho 45), tanto quanto numa reunião ordinária de monges,
cujas expressões se contorcem a ponto de parecerem criaturas não humanas (Estan calientes, capricho 13). Talvez
mais assustador se torne Goya quanto mais próximo de nosso mundo esteja aquilo
que não nos parece decisivamente humano. Mas por que Goya veria as coisas de
modo fantástico?
Mucho hay que chupar, estampa 45, Caprichos, 1799 |
O termo fantástico vem do grego, phantastikós, e significa o que é relativo
à imaginação, e deriva do verbo phaino,
que significa aparecer, tornar e fazer visível. Goya é fantástico por duas
razões: primeiro, seu pensamento aparece por invenções de imagens. Não se
trata, obviamente, de um pensamento teórico, mas de imagens do pensamento que
dialogam muitas vezes com legendas: imagens-figuras e imagens-palavras, em cujo
jogo está justamente o nosso trabalho de interpretação. Ao mesmo tempo, tais
imagens tornam visível o invisível: nossos pesadelos e devaneios. Nesse segundo
sentido, o fantástico não é apenas o adjetivo para o pensamento plástico ou
figurativo de Goya, mas antes, é a condição substantiva de seu peculiar modo de
ver e pensar. Logo, não se trata apenas de um pensamento por imagens, mas de um
pensamento cujo sentido extraordinário questiona profundamente o ordinário de
nossa condição, no limite também do que lhe é miserável ou perverso. Goya faz
aparecer verdadeiramente o que fantasiamos ou tememos, e às vezes também, o que
não suportaríamos ver. Se os monstros de Bosch fazem parte de um mundo
governado por leis próprias, distantes do humano, os personagens de Goya,
comenta Todorov, “são nossos próximos, e até uma outra versão de nós mesmos”. (Goya à sombra das Luzes, 2011).
Que viene el coco, estampa 3, Caprichos, 1799 |
Esse fantástico
modo de ver o mundo pode ser vislumbrado no reconhecimento do humano nos seres
não humanos (seres sobrenaturais que à primeira vista não somos nós, os quais
algumas vezes se situam num espaço que não nos pertence, sem chão ou
profundidade); mas seu fantástico também pode ser a expressão do que não vemos
propriamente com os olhos, mas sentimos e pressentimos, podemos temer ou gozar sordidamente.
Através de sua imaginação vemos por imagens o que não nos é visível e que, no
entanto, é parte dos fenômenos do mundo, é real. Como real é o medo infantil e
o prazer no sorriso da mãe diante do Coco,
invocado na tradição para assustar as crianças: vemos o que é invisível a olhos
nus e, ao mesmo tempo, visto na evidência do pavor (Que viene el Coco, Caprichos 3). Curioso também em Goya, é aparecer
muitas vezes algo extraordinário para nós quando assim não se traduz no
interior da própria representação. Suponho haver aí, entre o fantástico mundo cujo
objeto é não humano e o fantástico da fantasia humana, uma terceira forma,
talvez a mais espantosa e inquietante, a do fantástico nem totalmente humano,
nem exatamente não humano, dado como encenação natural de uma cena extraordinária. Um bom exemplo é aquele do senhor com cara de macaco cortejando
uma donzela (Mejor es holgar,
Caprichos 73): no interior da cena, não surge o problema de sua representação,
sua cara de macaco não é temida ou intrigante, em parte porque não é vista, em
parte porque somos nós unicamente quem a vemos. Assim como ninguém na cena vê o
sorriso maliciosamente à espreita da velha que media o galanteio. Melhor é folgar talvez porque seja
inevitável o que há de acontecer, por interesses e razões que no caso desconhecemos:
melhor é relaxar.
Hasta la muerte, 55, Caprichos 1799 |
Em todo caso, seja
no reconhecimento do humano no não-humano (bruxas, duendes ou fantasmas), seja
na representação do mundo invisível das sensações e da imaginação, seja, por
fim, na autonomia do extraordinário no interior da representação, nos três
casos, o fantástico de Goya produz uma impiedosa e necessária estranheza, ora
mais cômica, ora mais grotesca. Estranheza por sua vez que nos desloca de uma
ordem racional e segura da representação. Algo se irrompe do habitual e
perguntamo-nos sobre o que acontece, entre a superstição popular e a ilusão que
move a cada um. Até a morte a velha
diante do espelho se enfeitará, afinal ela é apenas algo sobre o que suas
ilusões se apoiam. Até a morte
poderão rir de seu gesto, mas quem abdicará de suas próprias ilusões? A velha
parece já fazer parte de outro mundo, mas a morte ainda não lhe venceu o que
nela vê e sonha, para além do que é visto e repetido no espelho (Hasta la muerte, Caprichos 55). E ainda não se vão! (Caprichos 59):
outra imagem de resistência à finitude, não pela forma lúdica do adorno e da
vaidade, mas pelo desespero de criaturas nuas e decrépitas que suportam o peso
da tumba, rezam, olham ao fundo para o céu ou se curvam angustiadamente à
terra. Como aceitar a morte? Juntemo-nos para resisti-la!
Y aun no se van!, estampa 59, Caprichos, 1799 |
O grande mérito de
Goya, percebe então Baudelaire, “consiste em criar a monstruosa verossimilhança: "Todas essas contorções, esses rostos bestiais, essas caretas diabólicas estão penetradas de humanidade. (Alguns
caricaturistas estrangeiros). Penetradas de humanidade: aí é que podemos nos reconhecer no outro representado. Mas não é tão simples assim: não somos bruxas ou duendes, nem nos vemos com caras de macacos ou caretas diabólicas nas ruas. Não seguramos a lápide com as forças que aos poucos nos abandonam. Goya nos conduz ao encontro do que justamente evitamos pensar da absurda situação de se estar neste mundo, afinal, não pedimos para nascer nem morrer, e por mais moribundo que se esteja, quem não quer viver mais um pouquinho? No caso de suas máscaras, elas não escondem a face que as sustenta, ao contrário, as
revela malignamente: Todorov é quem enfatiza esse ponto. Pelo artifício das máscaras, Goya faz
aparecer o que são os homens que não são o que imediatamente parecem: o rosto é
coberto por algo que não víamos, e assim desvelado do que nele mesmo se
ocultava. Lembro o médico-jumento, que nada mais faz senão testemunhar o fim de
seu paciente: nada pôde fazer ou nada fez de fato para salvá-lo? morreria o
homem afinal de sua doença ou do próprio tratamento? teria o remédio virado
veneno? Não sabemos. (De que mal morira?,
Caprichos 40, 1797-1799). Em suas gravuras, como em suas pinturas de exceção, a
exemplo das pinturas negras, o
interesse de Goya, como diz Ortega y Gasset, é oblíquo: “Pinta-os precisamente porque
são temas humanamente negativos”. E essa “falta de humana simpatia pelos seres
que pinta é precisamente uma das causas de seu estilo”. (Papeles sobre Velasquez y Goya, 1950). Os Caprichos de Goya se movem contra a verdade do clero e as
superstições populares, mas contra também o poder dos médicos, a autoridade dos
juízes e a classe dos legisladores, poderes que passam a contar mais com
razão do que com a crença, nos tempos modernos, o que não significa que sejam mais razoáveis ou menos arbitrários, na sua prática e na sua formação. O pensamento artístico de Goya retrata fantasticamente uma das condições de nossa humanidade, muitas vezes
desumana: a condição que nos coloca no caminho não exatamente entre o humano e
o divino, mas, no limite, entre a besta e o homem.
Jason de Lima e Silva
Ensaio publicado originalmente com o título O fantástico de Goya na revista Subtrópicos, 12,
Florianópolis: Editora da UFSC, 2014: https://issuu.com/ayrtonsilveira/docs/subtropicos_n12.
Fonte das imagens: https://www.goyaenelprado.es/inicio/
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