terça-feira, 11 de abril de 2017

A tagarelice dos convencidos

Se taciturno foi o adjetivo que vingou ao nome de Heráclito por uma vertente da tradição, ao menos completamente injusta não foi a designação sobre seu pensamento, cuja economia da palavra tem a ver com a impossibilidade de uma separação: entre a sabedoria do dito e a educação da escuta. “Pensar sensatamente”, diz o fragmento 112, “é virtude máxima e sabedoria é dizer (coisas) verídicas e fazer segundo a natureza, escutando”. Não há como pensar sensatamente, nem dizer coisas verdadeiras, se não existe uma disposição que se mantenha no limite da natureza, aquela que nos dá precisamente a consciência de nosso próprio limite, entre a infinidade do céu e a escassez da terra. Não há pessoa sensata, portanto, que fale pelos cotovelos, ouça apenas o que se ajusta a sua ideia e julgue sempre ter razão: a sua razão. O filósofo Ortega y Gasset, n' A rebelião das massas, acusa a perda da audição por parte do homem médio contemporâneo: “Para que ouvir se já tem dentro o quanto faz falta? Já não é época de escutar, senão, ao contrário, de julgar, de sentenciar, de decidir”. Por isso esse homem está empanturrado de opiniões e não abdica de impô-las para mantê-las (como quer manter sua classe, suas posses e seus nomes de família). Há uma longa tradição, grega e latina, fundada no aprendizado da escuta. Há anedotas como a do filósofo que, hospedado por um amigo, dormia com a mão esquerda sobre seu membro e a direita sobre a boca, pois era preciso segurar mais a língua do que seu sexo. Anedotas que revelam o perigo e a inconveniência da tagarelice


Salvator Rosa, Autorretrato, 1641
(a inscrição latina diz: Ou cala, ou diga algo melhor que o silêncio)
fonte da imagem: http://www.ciudadpintura.com/
Sobre isso Plutarco escreveu, mais de quatro séculos depois de Heráclito: um tratado sobre o tagarela e outro sobre a escuta, no início da era cristã. Os tratados demonstram a preocupação de se medir a língua para se aprender o necessário e não dizer além do suficientemente justo a cada situação: de quem ouvi o que falo? por que falo a quem digo? o que realmente sei do que já disse? E para se aprender qualquer coisa, o primeiro vício a ser vencido é o impulso de falar, sem ponderar a escuta. Ou seja, é preciso fechar o bico e baixar as orelhas, como se diz popularmente. A barbárie do tagarela é justamente aquela que o encerra em si mesmo, como presa de juízos precipitados ou de um acúmulo de informações sem horizontes teóricos para problematizá-las. Em Plutarco, o ouvido do tagarela não se comunica com a alma, mas com a língua (Sobre a tagarelice). Mal escuta, ricocheteia no céu da boca e se debate para devolver imediatamente o que não penetrou na alma. Pois o que ouve já se encontra sitiado por julgamentos em razão dos quais a língua não resiste a responder, opinar, qualificar, julgar, sobretudo se parecer contrário ao que já tem dentro de si. E se há na percepção alguma janela aberta para o universal, uma passagem para a compreensão do outro com os quais vivemos ou com cujas obras nos encontramos, a alma do tagarela patina no lodo bárbaro de suas próprias convicções, sem que seu dito ou ouvido receba do mundo a diferença que faz o mundo ser mundo. “Um homem tolo gosta de se empolgar a cada palavra” (fr. 87). Aqui Heráclito deixa de ser taciturno e por pouco não rimos dos tolos. E quantas palavras não precisaríamos ouvir! Evitemos citar os tolos, afinal quanto ainda é preciso calar! e para que dar aos tolos reputação? Quem já tem tudo a dizer, pouco sabe. Pode até saber muito de algo, mas não quer dizer que seja capaz de pensar sobre o todo, nem que seja útil ou razoável o seu discurso para os outros seres deste planeta. E pode até bem dizer retoricamente, na mesma proporção em que maldiz eticamente. Entre ditos e malditos, o tagarela acabará um dia discursando apenas diante de seus espelhos ou terá de se calar na frente do primeiro tirano para o qual sequer a lisonja parecerá convincente.


Jason de Lima e Silva

nota: este fragmento é uma versão alterada do ensaio A barbárie sem o discurso e o discurso filosófico como educação do humano, publicado no livro O discurso da civilização e o discurso da barbárie (org. José Cláudio Morelli Matos, 2014): 
https://issuu.com/editorausj/docs/o_discurso_da_civiliza____o_e_o_dis

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