sábado, 29 de abril de 2017

Sobre a validade de uma delação obtida com auxílio do pau-de-arara

Luís Felipe Bellintani Ribeiro
(professor de filosofia da UFF)

O título deste pequeno texto é meio estúpido, mas bem adequado à estupidez dos tempos que correm.
Quem pensava que os princípios do pomposamente chamado “Estado democrático de Direito”, vulgo “civilização”, eram favas contadas por estas paragens ocidentais, não titubearia em responder a quem lhe apresentasse este título na forma de pergunta: “nenhuma validade”, com todas as exclamações possíveis no encalço, acompanhadas de vocativos irônicos como “ó cara pálida”, de interjeições onomatopaicas como “ppffff” ou “dããã”, e de gestos performáticos como o de enfiar uma casquinha de sorvete imaginária na própria testa.
Isso há uns quatro, cinco anos atrás.
Mas estamos no Brasil de 2017, este imenso Projac a céu aberto no coração da América tropical.
Povoa-o bizarra tribo, que cultiva o estranho hábito de desjejuar, almoçar, lanchar, jantar e cear com um aparelho de TV metido nas fuças. Seja na própria casa, num boteco pé-sujo, num restaurante a quilo ou até num restaurante mais chique, desses em que se vai com a namorada em aniversários de namoro (até hoje não entendi o que faz o casal achar normal entrelaçar romanticamente as mãos com o William Bonner chovendo perdigotos eletrônicos sobre seus pratos desde um televisor fininho dependurado na parede).
O que era pra dar indigestão mais parece tempero sine qua non, tipo sal, óleo, alho ou cebola.
“Liga a Grobo aí, seu garçom, se não a gororoba não desce”, subentende-se o subtítulo no subconsciente do brasileiro médio.
Pois é, a Globo.
Fatidicamente a Globo.
Inexoravelmente a Globo.
Quando não é Globo, é uma quase-Globo piorada, o que dá no mesmo.
Vale Bom dia Brasil, vale Encontro com Fátima Bernardes, vale Sessão da Tarde, vale Globo Esporte, vale RJ TV, vale novelinha das 5, das 6, das 7, das 9, vale a minissérie que é a novelinha das 11, vale até o Vale a Pena Ver de Novo.
O brasileiro traça qualquer coisa da Globo numa boa. Tudo para não encarar o hipotético vácuo angustiante, solitário, silencioso, estático, amorfo, incolor, da visão pavorosa de uma televisão desligada (ai, meu deus, que medo dessa hipótese).
Hipotético porque, na real, ela sempre já está ligada.
É uma onipresença monopolística de fazer corar a emissora estatal da Coreia do Norte (e os caras ainda arrotam capitalismo 24 horas ao dia pra cima de moi, quer dizer, de nous tous...).
Não estranha que seja necessário trazer à liça a questão do título deste texto. “É que”, como diz Arnaldo Antunes, “a televisão me deixou burro, muito burro demais, agora todas as coisas que eu penso me parecem iguais”, e o basiquinho de outrora virou altas filosofias do futuro.
Que há retrocesso civilizatório qualquer um que vá urinar na hora da propaganda entre um plim-plim e outro (desde que no banheiro não haja outro televisor, bem entendido) percebe.
A questão é extensão do retrocesso.
Voltamos para aquém do momento histórico em que finalmente deixamos de sentir a vergonha de ver a sexta ou sétima economia do planeta constar no mapa da fome da ONU?
A acompanhar os próximos capítulos da novelinha “Brasil”.
As jornalistas da Globo, com aquele indefectível timbre de voz de jornalista da Globo – tipo: “mamãe, olha como eu exalo credibilidade” –, hão de nos sonegar mais essa informação, mas os capítulos da novelinha passarão na blogosfera; nem tudo está perdido.
Voltamos para aquém da constituição de 1988?
Deixo a resposta ao leitor concidadão; ops, con..., con..., o que mesmo?
Voltamos para aquém da era Vargas?
(Ainda chamam de “modernização”...)
Não, nem vou perguntar se voltamos para aquém de 1789, porque, convenhamos, acho que nunca fizemos cair nossa Bastilha, que por aqui se chama “casa-grande-e-senzala”.
Da perspectiva de uma sociedade patrimonialista escravocrata, toda tentativa de proclamar, enfim, a república burguesa é taxada a priori de comunismo bolivariano. Coisas do relativismo. Vendo de lá onde está o PSTU, o mesmo troço tem a fisionomia de reacionarismo de direita. Pobre de quem ficou no meio do corredor polonês...
Mas, peraí! Quando a coisa chega à flexibilização da presunção de inocência, à flexibilização do devido processo legal, à indistinção entre acusado e condenado, ao uso de tortura, para obtenção de confissão (seja o pau-de-arara stricto sensu, seja a ameaça de mofar na cadeia até onde der na telha do juiz), aonde é que fomos parar?
Qualquer um, numa googlada (acabei de fazê-lo), descobre que o livro de Beccaria, Dei delitti e delle pene, é de 1764.
Trevas (para ficar na metáfora do Iluminismo).
E esse negócio de primeiro achar o criminoso para depois achar o crime? Tenho a impressão de remeter à caça às bruxas da Idade Média. Tenho a impressão.
Enfim, meu leitor, não vou cansá-lo mais. O senhor que conhece um pouco de Direito Romano (não conheço patavina), poderia certamente estender ainda mais essa viagem no tempo em marcha ré.
Gostaria só de deixar-lhe, para sua reflexão própria, duas citaçõezinhas tiradas da filosofia grega antiga, onde circulo um pouco mais à vontade. Coisa bem velha, portanto. Uma é de Antifonte (480-411 a. C.). Outra, de Aristóteles (384-322 a. C.). Que, convenhamos, não são nenhuns bolivarianos. Elas tematizam um expediente proto-jurídico comum na época de pré-Direito, que os gregos chamavam de básanos, o “interrogatório sob tortura”.

Francisco de Goya y Lucientes, Quien lo puede pensar!
série Álbun C, 1810-1811
fonte: https://www.goyaenelprado.es/
Tive a ideia quando, ao ler com minha filha de dez anos (portanto dessa geração que trocou a tela da Globo pela do iPhone, a qual talvez não seja menos porcaria, mas, auspiciosamente, ao menos não é mais a da Globo) uma versão infantil do Corcunda de Notre-Dame, resolvi perguntar a ela por que, afinal, Esmeralda tinha assumido um crime, se na verdade foi Frollo que o cometeu.
Ela, do alto de sua década vivida, sem titubear respondeu: “quando ela viu os instrumentos de tortura, não quis nem saber, disse logo o que o guarda queria ouvir”.
“Mas ela sabia que ia ser enforcada”, retruquei.
“Mesmo assim, papai; na hora é o que todo mundo faz; quem sabe depois ela não conseguia fugir da prisão a tempo de não ser enforcada?”
“E se ao invés de ser enforcada ela, ao dizer o que o guarda queria ouvir, ganhasse em troca a liberdade?”
“Tá brincando, papai?”
(...)
Às citações em traduções próprias, às quais, por precaução, faço acompanhar os respectivos originais em grego (transliterado em caracteres latinos), para simples conferência de fidedignidade.
Sei lá, não vá alguém querer me conduzir coercitivamente por tradução comunista de texto clássico.
Grifos meus.

ANTIFONTE, Acerca do assassinato de Herodes (discurso de defesa de Helo, 49-50):

Skopeîte dè, ô ándres, kaì ek toîn lógoin toîn androîn hekatéroin toîn basanisthéntoin tò díkaion kaì tò eikós. Ho mèn gàr doûlos dýo lógo élege. totè mèn éphe me eirgásthai tò érgon, totè dè ouk éphe; ho dè eléutheros oudépo <kaì> nûn eíreke perì emoû phlaûron oudén, tê(i) autê(i) basáno(i) basanizómenos. Toûto mèn gàr ouk ên autô(i) eleutherían proteínantas hósper tòn héteron peîsai; toûto dè metà toû alethoûs eboúleto kindyneúon páskhein  hó ti déoi, epeì tó ge symphéron kaì hoûtos epístato, hóti tóte paúsoito strebloúmenos, hopóte eípoi tà toútois dokoûnta. Potéro(i) oûn eikós esti pisteûsai, tô(i) dià télous tòn autòn aeì lógon légonti, è tô(i) totè mèn pháskonti totè d’oú? allà kaì áneu basánou toiaútes hoi toùs autoùs aieì perì tôn autôn lógous légontes pistóteroí eisi tôn diapheroménon sphísin autoîs.

Examinai, ó bravos juízes, a partir de cada um dos discursos dos dois homens interrogados, o justo e o verossímil. Um, o escravo, falou em dois sentidos: ora disse que eu cometi o crime, ora disse que não. O outro, o homem livre, até agora não disse nada de mau a meu respeito, e ele foi interrogado sob a mesma tortura. Pois a esse último não era possível convencer pela promessa de liberdade como ao outro. Ele voluntariamente correu o risco de sofrer o que fosse preciso para estar do lado da verdade, mesmo sabendo que cessariam de torturá-lo na roda, se falasse o que lhes parecia conveniente. Em qual dos dois é razoável confiar? No que até o fim disse sempre as mesmas coisas ou no que ora disse isso, ora aquilo? Em todo caso, mesmo sem a tal tortura, aqueles que mantêm sempre os mesmos discursos sobre as mesmas coisas são mais confiáveis que os que estão em desacordo consigo mesmos.

ARISTÓTELES, Retórica I, 15d, (1376b31-1377a10):

hai dè básanoi martyríai tinés eisin, ékhein dè dokoûsi tò pistón, hóti anágke tis prósestin. oúkoun khalepòn oudè perì toúton eipeîn tà endekhómena, ex hôn eán te hypárkhosin oikeîai aúxein éstin, hóti aletheîs mónai tôn martyriôn eisin haûtai, eán te hypenantíai ôsi kaì metà toû amphisbetoûntos, dialýoi án tis talethê légon kath’hólou toû génous tôn basánon: oudèn gàr hêtton anagkazómenoi tà pseudê légousin è talethê, kaì diakarteroûntes mè légein talethê, kaì rha(i)díos katapseudómenoi hos pausómenoi thâtton. deî dè ékhein epanaphérein epì toiaûta gegeneména paradeígmata hà íasin hoi krínontes. [deî dè légein hos ouk eisìn aletheîs hai básanoi: polloì mèn gàr pakhýphrones hoi kaì lithódermoi kaì taîs psykhaîs óntes dynatoì gennaíos egkarteroûsi taîs anágkais, hoi dè deiloì kaì eulabeîs prò toû tàs anágkas ideîn autôn katatharroûsin, hóste oudèn ésti pistòn en basánois.]


As confissões sob tortura são testemunhos peculiares, que parecem conter credibilidade porque certo constrangimento é acrescentado. Não é difícil entender quais destas confissões cada uma das partes dirá serem as aceitáveis. Se elas forem favoráveis a uma das partes, é possível ampliá-las, dizendo que elas são os únicos testemunhos verdadeiros, se forem contrárias e a favor da parte adversária, poder-se-ia desconstruí-las dizendo a verdade sobre o gênero inteiro desse tipo de confissão: as pessoas submetidas a constrangimento não dizem menos coisas falsas que verdadeiras; os mais resistentes nem por isso hão de dizer a verdade, enquanto outros facilmente mentem para cessar mais rápido com a tortura. É preciso que os juízes remontem estas declarações a fatos exemplares que sejam de seu conhecimento. [É preciso dizer que não são verdadeiras as confissões sob tortura: muitos, com efeito, são durões e cascudos, e têm almas capazes de resistir nobremente aos constrangimentos, outros são covardes e tímidos, e só de ver a iminência do constrangimento se exasperam, de modo que não há nada de confiável nas confissões sob tortura.

PS: O colega Flávio Zimmermann me envia preciosa contribuição, um trecho dos Ensaios de Montaigne (II, 5), que vai no mesmo sentido do de Aristóteles:


“A tortura é uma invenção perigosa que parece antes pôr à prova a resistência à dor do que a insinceridade. Quem a não pode suportar esconde a verdade tanto quanto quem a suporta; pois por que a dor o levaria a confessar o que é mais do que o que não é? E, inversamente, se quem não cometeu o que lhe recriminam é bastante resistente para suportar a tortura, por que não o há de ser o culpado que em tal circunstância joga a vida? [...] “A dor obriga o próprio inocente a mentir.” [Públio Siro] Daí ocorre que aquele a quem o juiz inflige a tortura para não se expor a condenar um inocente, na realidade morre inocente e torturado. Muitos acusados sob os efeitos da tortura confessam o que não fizeram. [...] Muitos povos, menos bárbaros a esse respeito do que os gregos e os romanos que assim os chamavam, achavam horrível e cruel torturar alguém cuja culpabilidade não estivesse estabelecida. Que culpa terá ele de nossa ignorância? Não somos injustos em obrigá-lo a suportar coisa pior do que a morte, a fim de não matá-lo sem razão? E não se negará que assim seja, pois vemos muitos inocentes preferirem a morte a submeter-se a tal meio de informação mais penoso do que a execução e que pela sua violência não raro acarreta de antemão a morte.”

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