quinta-feira, 7 de setembro de 2017

A era dos espelhos

Filósofo: Diga-me então como viver aqui, se qualquer dúvida já lhes parece um crime? Conversar se tornou uma recreação clandestina.
Escritor: Já não é época para os ouvidos, e quando ouvem, não compreendem. Em contrapartida, as línguas andam afiadas, cheias de tiques para delatar o primeiro que escolhem para acusado, desde que lhes garantam os prêmios. Se faltar a língua, aponta-se o dedo, e ganha-se a liberdade.
Filósofo: Sim, por isso pergunto: como é possível viver neste lugar? 
Escritor: Já não é um lugar, não há mais lugar. Está tudo fechado. Melhor, está tudo aberto. Veja quantos buracos por todos os lados, nas paredes, no chão, nos olhos das pessoas, buracos de medo e de ódio. Arrancam de nossa terra tudo o que temos, luz e floresta, sangue e petróleo, e mais  buracos.
Filósofo: Sim, e o sangue é do povo. Com a ração do governo, o povo não pensa, mas ainda sangra, e aceita de boa vontade sofrer. 
Escritor: Muita gente do povo se julgou rica nos anos dourados, repudiou o governo por dar muita coisa aos pobres, maldisse a justiça por favorecer o trabalhador. O pobre esqueceu de que foi pobre, virou empresário. Agora paga juros ao banco e sua pastelaria não tem clientes, mas continua ligada a TV, e no mesmo canal.
Filósofo: E como vive aquela classe lá adiante nos arranha-céus! Veja só. Andam assustados com a própria sombra, enfurnados nos seus caixotes iluminados, a beira de um colapso, tomados pela insônia na madrugada. Não há que fazer! Por onde afinal recomeçaríamos?

Giorgio de Chirico, O grande jogo (Plaza de Itália), 1971

Escritor: A humanidade? Pelo fim. Só não sabemos o quanto ainda será necessário destruir para termos gente ao nosso lado... e recomeçarmos.
Filósofo: Os bem-sucedidos, os sábios charlatões, os juízes monomaníacos, todos eles abriram muitos buracos nesta Colônia, já maltratada há séculos. Agora nos calam.
Escritor: Talvez em breve nos matem.
Filósofo: Não, que dizes! E restaria algo?
Escritor: E o que resta agora? diga-me. Somente essa grande cidade de espelhos cercada de prédios blindados de vidro, aí estão os sócios, os seguidores discretos e exaltados, os bajuladores de toda a ordem, os empresários falidos também, os pastores propondo suas leis nas assembleias, empreendedores da fé, como babam, meu senhor! os rentistas sempre, sugando a fonte infindável das dívidas! Viste os revoltados da pátria? pedem agora colo para suas mães. Que pátria existe depois da festa sobre nossos minérios e do charco aberto pelos transgênicos? 
Filósofo: Lembre-se, temos de andar pelas margens para os espelhos não nos alcançarem, os atalhos sempre! Se capturam nosso reflexo, somos facilmente confundidos.
Escritor: Eles próprios já não suportam a proliferação de suas imagens. Por isso desejam a guerra, a guerra ou morrem do tédio consigo na frente de seus pares. A guerra pelos espelhos é a primeira de todas. Olhe quantas de suas miragens se projetam nas telas dos edifícios: a lenda, o fabuloso, o herói!
Filósofo: O guerreiro imortal! Boceje à vontade, aqui está o banco, vamos nos sentar e comer. Essa praça ainda é o nosso refúgio e hoje temos um pouco de luz sobre os plátanos e sobre as folhas que cobrem o caminho.
Escritor: Um gole de café, meu amigo, vamos falar baixo e nos sentir livres.
Filósofo: O ar selvagem de um parque abandonado assusta até a polícia, e nos protege.
Escritor: Sim, sim, mas por que afinal seríamos perigosos?

Jason de Lima e Silva

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