sábado, 11 de novembro de 2017

Barbárie e massificação

"(...) Comecemos pela palavra: barbárie. Os gregos identificavam os bárbaros como incapazes de pólis, ou seja, incapazes de deliberar e agir em razão de uma destinação comum, em razão de uma comunidade. Barbárie significa o reino das paixões sem lei: institui a tirania, de um lado, a escravidão, de outro, como aparece no Banquete de Platão.  Há um fragmento, em todo caso, que é preciso recordar em Heráclito: um filósofo que viveu entre o sexto e o quinto século antes de Cristo. Esse fragmento é um dos muitos tesouros que a tradição nos legou. Diz ele assim: “Más testemunhas para os homens são olhos e ouvidos, se almas bárbaras (barbárous psychas) eles têm” (HERÁCLITO, 1989, fr.107). O que nos diz esse fragmento? Para aqueles que tem a alma bárbara, de nada adiantam seus sentidos, já que não dão sentidos ao mundo do que sentem. Pela primeira vez na história do pensamento, a barbárie não está situada na exterioridade de uma língua ou povo, mas na interioridade do homem, na sua alma. (MATTÉI, 2002, p.93). O que faz com que a alma seja submetida à barbárie? O fato, especialmente, de não se ver livre de seus afetos particulares para o que se mostra, e de não conseguir ouvir além do que já compreende, e por isso mesmo, se recusa a compreender. No seu segundo fragmento, Heráclito diz que a maioria dos homens vive uma inteligência particular. Essa prisão da alma em si mesma, sem abertura para o outro que é o próprio mundo, impede a alma de perceber as coisas tais como são. E um dos trabalhos da dialética de Platão no sétimo livro da República será o de erguer os olhos da alma para além de seu lodo bárbaro através das artes, tais como a ginástica e a música.  A alma, enquanto escrava de sua barbárie, não tem forças, nem direção e nem concentração suficientes para escalar a sabedoria rumo ao bem de todas as coisas, o bem que nos faz pensar. E Jean-François Mattéi diagnostica quatro traços de ressentimento, a partir dos quais se reconhece a atitude daquele que seria um bárbaro: 1. O desconhecimento da beleza de uma obra, a ignorância. 2. A denegação do que é elevado, a pretensão. 3. A incapacidade de criação, a impotência. 4. A vontade de destruição, a regressão (MATTÉI, 2002, p.21). Ignorância em relação à beleza, pretensão sobre o que é elevado, impotência para criar, regressão no destruir. Claro, toda a barbárie se institui no reverso e na dinâmica de uma civilização. Em outras palavras, barbárie e civilização não são senão signos que habitam e configuram a mesma humanidade. Como se um pêndulo na terra variasse seu compasso entre a medida da excelência e a pretensão da estupidez, a potência de criar e a obstinação de destruir ou nada significar. Quando Ortega y Gasset fala em direito à vulgaridade, ele fala, em outros termos, no direito de ser bárbaro (o que parece um contrassenso). O direito de opinar sem dar razões, o direito de falar sem saber quem atinge ou o que atinge. A contradição quase genética da democracia é permitir um discurso ou ação contra seu próprio princípio, ou seja, contra a liberdade. E sua morte começa quando está autorizado a qualquer um dizer o que julga pensar sem levar em conta suas razões, sem pensar, justamente, que aquilo que se diz a outros e se faz com outros não tem efeito se não se considerar a diferença. Mais do que a multidão, como Benjamin diz a propósito do conto de Allan Poe, a massa é que tem algo de bárbaro: na ação e palavra de cada indivíduo. Se o homem frustrado e isolado era a condição para o totalitarismo em Hannah Arendt, o homem-massa democrático também o é, sobretudo quando julga falar por uma maioria e age contra o que justamente garante a democracia. E vejam, não é difícil se instituir uma tirania em um terreno democrático, tal como previu Tocqueville em 1835, quando fala em tirania da maioria.  basta a ingenuidade de pensar não apenas que a maioria realmente pensa, mas de que pensa bem e do melhor modo. Se para Ortega y Gasset o homem-massa é o senhor satisfeito e vaidoso, para Tocqueville, a maioria tem adoração por si mesma. Adoração o bastante, poderíamos dizer, para não reconhecer as virtudes sociais das minorias ou, ao contrário, para encontrar facilmente o culpado de todos os seus males reais ou fictícios. Quando o discurso da maioria se volta contra o outro por ser o outro (outra forma de vida e de pensamento), infindável e imprevisível na sua diferença, quando o discurso da maioria se põe contra toda a pluralidade que faz o mundo ser um mundo comum, de seres iguais na sua própria diferença, neste momento apenas um único ego se projeta sobre o corpo individual e social: o ego patriótico, moralista, religioso, salvador da ordem ou do cidadão de bem, pouco importa qual seja (...)."

Trecho do capítulo A barbárie da cultura: massificação e imortalidade, por Jason de Lima e Silva, do livro Dos modernos aos contemporâneos: contribuições, organizado por Ernesto Giusti e Evandro Brito (Apolo Virtual Edições, 2017).



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