sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Ódio, amor e fascismo

O ano não acabou e ainda se tem muito ódio a destilar. É preferível claro sempre viver e falar de amor, ainda que se tenha gastado a palavra como se gasta a lima ao bater à guisa de martelo. Vale amor para tudo, até para os crentes que odeiam a pluralidade de crenças ou a razoabilidade do ateísmo. Assim como vale a palavra paz para todos, até como promessa de quem lucra com a guerra. O ódio corresponde a um sentimento de aversão ou de repúdio por algo. Mas poderia haver um ódio justo ou injusto? Um ódio por exemplo à arrogância escarnecedora do ignorante? Um ódio à suposição de superioridade moral em razão de sua classe econômica ou linhagem familiar? O mais louvável, claro, é não odiar, já que esse tipo de sentimento diminui a potência a cada vez que o estômago se embrulha de asco, a exemplo de quando o barulho da propaganda televisiva torna odiável a televisão. É um afeto, sem dúvida, frequente e politicamente produzido, a exemplo de quando o tom melindroso de uma notícia em uma frase de reprovação tem por finalidade aprisionar seu espectador ao ódio que lhe interessa, para justamente neutralizar sua faculdade de pensamento. 

Cena do filme 1984, dirigido por Michael Radford, 1984, baseado no romance homônimo escrito por George Orwell, 1949

Mas não é difícil ser enganado, pelo ódio e pelo amor, e não é por isso que se desiste de amar, nem se está totalmente livre de odiar. O amor pode até mesmo servir de estratégia coletiva de luta, ou ponte para a transformação de si mesmo, quando seu sentido ultrapassa a romântica expectativa de ser amado na proporção ilusória de quem ama, para se converter na abertura pela qual o mundo se torna admirável, e a vida ganha algum sentido, por existirem pessoas que dizem muito pelo que simplesmente são e são muito pelo que significativamente deixam, estejam vivas ou mortas, entre a infinidade do céu e a escassez da terra. Em contrapartida, para dobrar essa sinistra vontade do ódio que leva alguém a deplorar o que lhe ameaça ou consigo não se identifica, não seria possível retirar desse afeto o princípio ético de suspeita contra tudo o que em nós aparece como desprezível, pequeno demais, tão sem graça perto daquilo que transparece placidez e profundidade, como a alma do oceano? Um verdadeiro amor-próprio pressupõe um desprezo ascético de si mesmo, uma libertação permanente de seu eu, de sua identidade, de seu louvor, como arte de trocar seus méritos pelo conhecimento da história, seus presumíveis talentos pelo estudo das artes, seu orgulho pela superioridade da natureza. E o fascismo inversamente começa quando se mitifica o vazio da brutalidade e se passa a buscar os culpados para as razões de seu ódio, unidade de todos os cansaços e megalomanias, ânimo incansável para destruir o que desconhece, incapaz de se metamorfosear como sentimento para amar o que lhe ultrapassa.

Jason de Lima e Silva

2 comentários:

  1. Meu caro Jason
    Belo, bom e verdadeiro. Obrigado pela reflexão sobre esse ano que passou e para abrir esse ano louco que está chegando. Um abraço,
    Nazareno

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    1. Agradeço o comentário, meu querido Nazareno, sempre bom receber também por aqui os amigos, sobretudo aqueles que nos inspiram bons pensamentos.

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