quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Sobre teísmo e ateísmo

Flávio Zimmermann
https://www.facebook.com/flavio.zimmermann.9 

Discutir crenças religiosas é um tabu em muitas sociedades, inclusive a brasileira. Em muitas ocasiões, discutir futebol e política também, como diz o ditado popular. Não sei qual a razão disso, mas me arrisco a crer que essas questões geralmente são evitadas pela maioria das pessoas por fazerem parte do que elas julgam ser um conjunto de suas crenças fundamentais que dificilmente podem ser modificadas. Talvez seja exagero considerar a preferência por um time de futebol uma crença, digamos, estrutural (a não ser quando nos referimos a torcedores fanáticos), mas no caso da crença em Deus isso parece ficar mais claro. Seja como for, penso que uma crença que não possa ser debatida nem colocada em dúvida, na verdade não é uma crença bem fundamentada, pois, se fosse, não teria porque ter medo de refletir sobre si mesma. É importante observar que os extremos – o teísmo e o ateísmo – entendendo por isso como a crença total ou a descrença completa na existência de qualquer Deus, não faz muito sentido para quem se ocupa desses temas. Às vezes as pessoas costumam tomar determinados conceitos teóricos e adotá-los para si de modo exato, petrificado. Em política, por exemplo, é muito comum falar de socialismo x liberalismo, mesmo sem jamais ter encontrado qualquer nação socialista ou liberal no planeta. Em religião, da mesma forma, há os que se consideram teístas ou ateus de modo inflexível. Mas, pergunto, como alguém poderia firmar tão bem suas crenças na existência ou não de Deus? O filósofo Denis Diderot, ao se deparar com a pergunta referente à existência de ateus verdadeiros, devolve a questão ao seu interlocutor, respondendo: “e você acredita que exista algum cristão verdadeiro?”.

José Viera, Duda pendiente (Dúvida pendente), 1998, óleo sobre tela
fonte: http://pintura.aut.org/SearchProducto?Produnum=82251 (Ciudad de la pintura

Na verdade, penso, o que existem são graus de teísmo e ateísmo: temos razões para crer ou não na existência de Deus, e essas razões podem oscilar em determinados momentos de nossas investigações. Ou, mesmo que tenhamos fixado determinados argumentos favoráveis ou desfavoráveis a esse assunto, os mesmos nos convencem apenas da razoabilidade da existência ou inexistência de um Ser Supremo. Aquele que acredita ter encontrado argumentos definitivos para um assunto tão misterioso e incerto, ou é ignorante (no sentido de ignorar o estado da controvérsia) – e certamente continuará assim enquanto não busca por mecanismos para fortalecer as suas crenças – ou pode se tornar um fanático religioso, por não se permitir a ouvir argumentos contrários. Acontece o mesmo em filosofia: se julgarmos ter encontrado a verdade, simplesmente não daremos ouvido às outras visões de mundo e permaneceremos fechados às nossas próprias crendices. É por isso que falamos em ter opiniões, quando se trata de adotar uma visão de universo, e fé em matéria de religião. A fé é oposta à certeza. Verdade é o que pode ser demonstrado de modo objetivo a todos os seres humanos; o resto é chamado de crença. A fé, portanto, longe de espelhar certezas e dogmas, vem sempre carregada de incertezas e dúvidas. Como diz Miguel de Unamuno, “Uma fé que não duvida, é uma fé morta”.

Flávio Zimmermann é doutor em filosofia pela USP e professor no curso de filosofia da UFFS.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Sobre a utilidade da filosofia



Flávio Zimmermann 
(doutor em filosofia pela USP e professor da UFFS)
https://www.facebook.com/flavio.zimmermann.9

         Uma das primeiras questões que vem à mente ao iniciante do curso de filosofia diz respeito à utilidade do curso. Tal curiosidade certamente atinge também os que se deparam com o assunto em questão em momentos diversos de suas vidas – na escola, em um livro, num artigo de jornal como esse – ainda que em menor grau, uma vez que o seu interesse pelo tema deva ser menos intenso. 
Lembro-me de quando estava no início da minha graduação e, ao ir à busca de um tratamento a essa questão, ter encontrado satisfação em uma análise oferecida pela profa. Marilena Chauí no seu famoso livro “Convite à Filosofia”. Mas, naturalmente, a pergunta em torno da utilidade da filosofia continua nos atormentando, uma vez que somos, enquanto estudantes de filosofia, frequentemente interrogados pelo objeto do nosso estudo. 
Existem, é verdade, parâmetros comumente esperados pelo jovem ingressante no curso como o de fazer uso da filosofia para transformar a realidade ao seu redor, aperfeiçoar a sua visão do mundo atual, encontrar respostas aos problemas pessoais e sociais que o atormentam, muitas vezes de modo semelhante à utilização do conhecimento que se pode obter de uma determinada droga para aliviar uma doença ou o conhecimento de um método de ensino para ser colocado em prática.

 Francisco de Goya, Murió la Verdad, Desastres de la guerra, 79, 1814/1815
fonte: Museo Nacional del Prado / https://www.goyaenelprado.es/inicio/

 De fato, é comum querer utilizar-se de concepções e pensamentos filosóficos a fim de desatar os nós da vida diária, seja lá o que cada um entenda por 'filosofia'. Aliás, nos dias de hoje, todas as nossas realizações parecem querer resultar num fim útil e vantajoso, seja para nós mesmos, seja para toda a sociedade. Muitos procuram se envolver somente naquilo que possa gerar algum tipo de lucro financeiro para si e sua família, já outros buscam outras formas de vantagens: uma sociedade melhor, seres humanos mais justos e honestos. O próprio pensamento científico só parece chamar a nossa atenção quando resulta em algo útil para a humanidade. Já se viu muita gente perguntar, indignada, pela necessidade de tanta pesquisa em torno da vida em outros planetas ou sobre a origem do universo, justamente por acreditar que tais investigações não melhorariam as nossas vidas. Se levarmos a questão adiante, muitos estudos mostram que o interesse das pessoas pela religião hoje em dia está mais ligado à busca do bem-estar pessoal e de uma vida terrena mais tranquila do que um amor incondicional a um Ser Supremo.
Deveria também a filosofia se render às exigências do nosso tempo e mostrar-se útil neste aspecto? Mas não faz sentido dizer que a filosofia deva se reduzir a um tipo de pensamento; ela busca por uma definição sistemática e coerente de pensamento humano. Não poderia então a filosofia ao menos apresentar-se como um conjunto de definições no qual se possam extrair preceitos de vida? Ainda que uma das áreas da filosofia – a filosofia prática – tenha como tema investigar os princípios abstratos sobre os quais se funda o comportamento humano e a formação e associação de indivíduos em comunidade, tais princípios dificilmente seriam aplicados na vida prática de modo eficaz e qualquer tentativa desta natureza pode nos levar a sérios desvios e má interpretação dos princípios filosóficos. Não nos esqueçamos o quanto antissemitas julgaram estar utilizando fundamentos da filosofia de Nietzsche e ditadores socialistas a filosofia de Marx!
Ainda assim, parece razoável julgar que a filosofia pode e deve ser usada para nos ajudar a desembaraçar questões da vida prática, detectar e denunciar falácias nos discursos da vida comum, encontrar coerência nos sistemas políticos ao qual pertencemos, buscar dirigir nossas decisões dentro de uma teoria de comportamento moral. Mas sejamos prudentes e cuidadosos! A rigor, a ética e a filosofia política nos fornecem princípios abstratos e metafísicos referentes ao modo como as pessoas e sociedades se organizam ou deveriam se organizar. Entender o seu funcionamento no cotidiano é tema próprio das ciências sociais e políticas. A filosofia mais propriamente busca por um sistema político ideal, anseia por uma explicação de como pensam e se organizam os indivíduos ao nosso redor, problematiza as soluções filosóficas apresentadas pelos clássicos, nunca de um ponto de vista de como as coisas acontecem na realidade, mas sim verificando se seus princípios são coerentes, se suas conclusões se seguem logicamente de suas premissas, se as bases ou pontos de partida do seu sistema são válidos ou plausíveis. Este pequeno ensaio, embora longe de adotar o rigor exigido de um texto filosófico, deverá também ser encarado de modo crítico pelos seus leitores, mesmo não recorrendo a fatos, apenas a ideias.

 Francisco de Goya, Si resucitará?, Desastres de la guerra, 1814/1815
fonte: Museo Nacional del Prado / https://www.goyaenelprado.es/inicio/

Pode-se dizer que a filosofia, ainda que seja uma criação humana, não surgiu propriamente para atender aos interesses de determinados homens ou de uma época; talvez nem mesmo da humanidade. Filosofia é a busca pela verdade, e verdade não responde aos anseios de um contexto histórico apenas, nem necessariamente precisa agradar a nossos interesses particulares. Ainda que o acesso à verdade pudesse gerar em nós angústia e desconforto, nem por isso deixaríamos de procurá-la, sob pena de extinção da própria filosofia.
Seja como for, a filosofia em si e o uso que podemos fazer dela talvez não andem de modo tão separados e independentes um do outro. Vejamos. Se procuro pela verdade, mais faço uso do meu intelecto e mais preparado estarei para enfrentar os desafios da vida. Quanto mais me debruço na busca pelo saber, mais apto me torno para analisar perspectivas políticas e sociais vigentes, e mais habilitado, consequentemente, estarei para refletir sobre a minha própria situação dentro do espaço em que vivo. Longe de me dar mecanismos e ferramentas para transformação pessoal e social, lugar hoje ocupado pelas ciências humanas, a filosofia e o uso puro da razão, ao elevarem a minha atenção a questões que se encontram para além de nossas preocupações cotidianas, são os únicos instrumentos que podem me capacitar na elaboração de raciocínios ordenados, rigorosos, colocando-me em harmonia com as reflexões mais sutis e abstratas da humanidade e me unir mais estreitamente aos pensamentos mais brilhantes da história. Se há alguma coisa a ser extraída do bom uso da razão é tão somente a própria habilidade e competência de bem raciocinar, que pode naturalmente ser utilizada para outros fins. Mas é preciso paciência e maturidade! Buscar a utilidade imediata nas coisas só me trará frustração; já o uso desinteressado da razão na procura pela verdade poderá me tornar mais hábil a raciocinar sobre os temas da vida comum.


domingo, 1 de janeiro de 2017

Longo passado pela frente!


Paul Klee, Angelus Novus, 1920, óleo e aquarela sobre papel


“Há um quadro de Klee que se chama
Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso”.


Walter Benjamin, Sobre o conceito da história, tese 9, 1928.
In: Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1987,